Paradoxos


Foto: Henri Cartier-Bresson, Bougival, France, 1955.

Sempre que vejo uma fotografia de Cartier-Bresson, tenho a impressão de que ele (ou eu) tem uma fixação pelos paradoxos. É que suas imagens me induzem a pensar sempre nos opostos que caracterizam a vida. Jovem-velho, adulto-criança, homem-mulher, homem-animal, longe-perto, vida-morte.



Manipular imagens



Na eleição passada para prefeito em Caetité, circulou, durante a disputa eleitoral uma foto ridiculamente manipulada. Ao que parece a foto satirizava um dos candidatos que parecia não arrebatar tantos eleitores como o seu discurso mostrava. Uma amiga acusou-se de ser o responsável pela foto, isso porque eu a reproduzi na minha página do face.

Mas esta foto não fui eu que a “fiz”. Não tenho fotoshop, nem talento para lidar com estas modernidades. Tudo isso está longe do meu alcance. Também não ando metendo gente onde não existe e maquilando a realidade. Para isso bastam os políticos. Tenho mais o que fazer.

O que me interessou nesta foto foi a possibilidade de discutir como a fotografia pode ser usada para construir uma realidade e colher com isso melhor resultados perante a opinião publica. Devemos todos estar atentos a isso.

Estudo fotografia a sério. Por isso quando vi a imagem pensei logo na celebre foto de Mathew Brandy que sabendo do poder da imagem para distorcer a realidade, tratou de dar um jeito no desengonçado candidato à presidência dos EUA Abraham Lincoln, quando este veio bater a sua porta para um registro fotográfico, naquela que foi a primeira campanha política em que uma foto foi usada como propaganda.

A fotografia nem bem estreava no mundo e os políticos já a usavam para distorcer a realidade. Até aí nenhuma novidade. Os políticos estão sempre na vanguarda da malandragem.

Mathew Brandy cuidou no registro de Lincoln de disfarçar o seu pescoço desproporcional levantando a gola do colarinho. Também melhorou a sua face retocando os sulcos com maquiagem. É sabido de todos, menos dos eleitores, que Lincoln era banguela. Para parecer imponente e dar uma estampa de candidato sério, Brandy fotografou Lincoln em plano americano (meio-corpo). Nessa perspectiva ele camuflou a sua silhueta do lenhador magricela, pouco confiável ao posto de chefe de Estado da emergente potência.

A foto foi um sucesso. Caiu no gosto do povo. Todos ficaram impressionados com a figura esquia do postulante ao cargo de presidente.

A partir daí, todos que sucederam Lincoln na Casa Branca trataram logo de usar os mesmos artifícios.

O caso mais emblemático foi o de Franklin D. Roosevelt. Vítima de poliomielite aos 39 anos, ele pôde contar com a conveniência dos fotógrafos da época para encobrir o fato de que só conseguia se locomover em cadeira de rodas. Isso sem que a opinião pública jamais chegasse, a saber, de sua condição de saúde. Em seus 12 anos de poder Roosevelt jamais foi mostrado em sua real condição física.

Ao ver a foto na página de um amigo quis trazê-la ao meu espaço para poder discutir, de forma desapaixonada, o poder das imagens na construção de realidades questionáveis. A mim pouco importa que candidato x ou candidato y faça o que faça, interessa-me estar atento e não me deixar embasbacar com massas.


Mais do que mostrar a realidade, a fotografia quer nos fazer acreditar numa narrativa visual que parece séria. Porém, como qualquer discurso ela está prenhe de interesses e cabe a nós aceitá-los ou não.

Amigos

Uns creem que o melhor amigo do homem é o cão, outros, como Vinicius de Morais preferem o Whisky (que o chamou de cachorro engarrafado). Como não sou chegado a bichos e não me cai bem o álcool, tenho os livros na conta dos meus melhores amigos. 

Quadra do tempo da Guerra Civil Espanhola

Na noite em que a mataram
Rosita teve muita sorte
das três balas que apanhou
só uma é que foi mortal


Quadra popular do tempo da Guerra Civil de Espanha, citada por Alexandre O´Neil. O estro popular é fecundo em variantes. A poesia anônima vai do lirismo ao profano, passando pelo humorístico, chegando até o sentencioso onde a sabedoria popular alcança máximas filosóficas que fazem empalidecer os melhores doutores em filosofia. Porém chama atenção essa quadra citada por O´Neil. Ela é incomum. Mesmo preservando as características principais do gênero: a simplicidade do tema e do esquema métrico, ela destoa das outras por não rimar. É a única do gênero que vi até hoje. Como todos sabem a literária popular jamais dispensou o recurso da rima, elemento indispensável para preservação e fixação da memória literária em comunidades sem escrita.

Revelação

Foto: Bruce Gilden.

A gente olha as fotos de Bruce Gilden e não imagina ser possível o que vemos. Diante de nossos olhos surgem rostos macilentos e disformes. Aquilo tudo parece coisa estranha à realidade, porém, não é.

Tão deslumbrados que estamos com as figuras das celebridades, não nos damos conta de que a vida murcha, violentamente, a velocidade de 60 minutos por hora.
Contra isso infundimos um sem-número de malogros, mas todos são baldados pelo tempo.

O que vemos na tevê, nas capas de revistas e outdoors não passa de engodo. Por trás da maquilagem podemos esconder manchas, sulcos e outros detritos que se quer negar a existência, mas tudo isso não passa de ser o que são: tentativas medonhas de negar o inegável.

Por tudo isso, gosto dos trabalhos fotográficos de Bruce Gilden. Ele reconstitui-nos como somos: falíveis. O resultado pode não ser agradável. É sempre doloroso ver-se no espelho da arte.


Façam-me o favor

Sermoneia este que devo votar em seu candidato “ele é mais bem preparado e não tem ligações com grupos corruptos que assaltaram o país”.

Quer outro convencer-me que a verdadeira quadrilha, a Globo e outros meios de comunicação, estão impedindo que eu perceba. Garante ele que seu candidato nada tem a dever. Este se pautou sempre pela lisura e correção chegando a quase ser um santo de tantas bênçãos que derramou e promete derramar sobre o povo.

Um terceiro, igualmente bem intencionado, ofereceu-me provas de que tudo o que reproduzimos não é nosso e sim, de um grupo de ricos que sempre dominaram o Brasil.

A todos agradeço, mas andaria mais bem humorado se me deixassem na ignorância do que as suas cabeças pensam sobre política.

Dos caprichos da política

La Fontaine, o maior fabulista da literatura francesa, dizia fazer uso dos animais para instruir os homens. Claro está que esta é uma forma engenhosa do escritor dizer o quanto é estúpido a natureza humana, que precisa apanhar lições dos bichos para se ilustrar. Perante as notícias que correm, não deixam dúvidas o quanto são mesmo estúpidos os bichos humanos. O país está à beira do precipício, há três anos que não temos governo e os políticos se engalfinham pelo poder.

Dos gestos

"O contador de histórias", do pintor Howard Terpning..

Não é apenas de palavras que se vive o contador, mas também de gestos. Com os gestos o contador mesmeriza a audiência e faz crível a história mais fabulosa de todas. Paul Zumthor o medievalista suíço atribuiu ao gesto um lugar de destaque na fala. Luiz da Câmara Cascudo disse em Literatura Oral no Brasil que de mãos amarrada não há criatura vivente capaz de contar uma história. A pintura de Terpning atesta essa impressão do mestre potiguar.

Ladrão doente

Os jornais falam que Geddel não aguentou ver a polícia em sua porta e mais uma vez voltou a chorar copiosamente. A sua mãe, vendo o filho em lágrimas, disse que ele não era corrupto, mas que sofria de "problemas sério de saúde". Esse problema deve ser: cleptomania. Há muito que essa doença tomou a classe política brasileira. 

A briguinha



O povo tem se revezado em mostrar no face a figura de Geddel sendo elogiado por políticos ora da esquerda, ora da direita. A intenção, suponho, é fazer com que a audiência boco pense que quem pariu Geddel não foi sua mãe, mas sim aquele que nos vídeos e fotos estão ao seu lado afagando, elogiando e reconhecendo os seus préstimos políticos. Algumas pessoas no face, acham que todo o mundo são como elas, que se emprenham pelos ouvidos e estão de pernas abertas para as ideologias. A briguinha pelos corações e mentes revela que a mentalidade dos partidários não chega a rivalizar com uma ameba.

Tempos sombrios

Pessoas que jamais foram a um museu na vida e que nada conhecem de arte, estão tentando impedir outras que se deleitem com a genialidade de trabalhos espantosos, só porque estes mostram corpos nus. Os trabalhos da exposição Santander que ora sofre com a censura nada tem de obsceno. Há algo de doentio no fato de alguém ver pecado ou imoralidade em tudo. Algo de muito errado se passa na cabeça das pessoas que entendem que o nu artístico é merecedor de censura e reprovação. Penso que quem age assim manifesta os sintomas de uma mente reprimida que jamais foi capaz de superar a sua adolescência ou que não chegou a viver a sua sexualidade plenamente. É estranho que isso esteja acontecendo. Imaginei estar ultrapassado em todo o Ocidente a condenação a nudez. Algo vai muito mal no país quando as pessoas não sabem diferenciar arte de exploração sexual.

Ouvido môco

O padre Marcelo Rossi é um fenômeno literário. Seus livros figuram entres os mais vendidos no país desde 2010. Eu mesmo que não sou um leitor de sua obra tenho um de seus livros na estante. Minha mãe me deu no dia de meu aniversário. Ela me disse que eu iria achar grandes lições nas palavras do padre. Não sei de onde ele tirou isso. Da leitura do livro não foi.


Não sou lá muito religioso. Tenho reservas às religiões que figuram por aí. Muito disso por conta do que oiço alguns dizerem sobre o que se passa no interior das igrejas. As pessoas lá, salvo algumas raríssimas almas, estão mais preocupadas em notarem como as outras se vestem. Alguns vão para botarem os mexericos em dias. Em nenhum outro lugar se sabe tanto da vida alheia do que no interior de uma igreja, segredou-me um fiel de crisma e missa. Que o Senhor a todos favoreça é coisa que dizem os padres. Mas eles dizem isso a ouvidos môcos.

Inveja



Ando tão alheio as novidades que nem notei por aqui que Chico Buarque se tornou o mais novo alvo do tribunal do facebook. Um amigo me trouxe a novidade, naquela velha formula conhecida há muito como: a conversa fraterna. Estão chamando Chico de machista. As pessoas trocaram a admiração de antanho e a história do compositor, por cinco versos de sua nova canção. Versos que vem causando a raiva de muitos. Penso que a mola forte dessa raiva é a inveja. Inveja do talento alheio, do sucesso que queriam ter e não alcançam o reconhecimento dado a este e aqueloutro e que esperavam seu. Podem empacotar essa raiva no discurso do politicamente correto, mas não deixa de ser inveja o que se passa com os raivosos que acusam Chico de machista.

O que me afeta

Foto: Sebastião Salgado
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Há um componente subjetivo nas fotografias. Barthes chamou esse componente de punctum. Ele diz que há nas fotos algum elemento que nos afeta, que nos toca, que nos fere. Esse elemento pode ser os sapatos de uma pessoa, o chapéu de outra ou qualquer coisa que esteja na foto e nos hipnotize o olhar.

O punctum é individual, cada espectador é afetado de maneira diferente por ele. O chapéu na cabeça de um homem pode ser o punctum para um espectador, como também pode não ser para outro que tem o olhar voltado a outro elemento que lhe toque. Cada um pode-se dizer, confere um significado íntimo às fotografias que vê, imprimindo-lhe sentido através das coisas que lhe fere, que lhe toca, que lhe afeta mais do que outras.

Quando vi pela primeira vez a fotografia que ilustra esse post de Sebastião Salgado, uma coisa presente nela me tocou profundamente.

O que me afetou, ou seja, o meu punctum? São os indivíduos no primeiro plano. Há neles algo contratante que me sugere a ideia de sociedade e das injustiças flagrantes que a caracterizam. Um dos homens está quase nu. É despossuído, um flagelado, uma vítima da sociedade de classe. O outro veste as insígnias do Estado (Bota, farda, quepe e o sempre muito persuasivo cassetete) que oprime e tenta controlar o individuo insubmisso.

Mas há algo mais na foto que me afeta. A posição do fotógrafo no momento de fazer a foto. Ele se posiciona de maneira a dar dignidade ao despossuído. Ele o flagra de baixo pra cima e faz isso bem no momento da reação contra a agressão do "Estado", entenda-se do policial. Há na foto uma força metafórica que explicita de maneira ilustrativa o que é a sociedade que vivemos e como ela age contra aqueles que ousam desobedecê-la. Há também uma mensagem de esperança de que é possível lutar contra, mesmo quando você parece privado de qualquer bem capaz de reagir à altura: resta-lhe a coragem e a força de vontade.

Está é uma foto em tudo excepcional. Por isso, desde já, ela é uma das minhas prediletas.

Ponte Singers: Pilgrim's Chorus (Tannhäuser) by R. Wagner



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Wagner me arrepia. Sempre que ouço o Coro dos Peregrinos sinto uma força incontida dentro de mim. Como uma vontade de potência.

Agora, ó Santa Casa, posso olhar
Feliz por saudar suas belas pastagens.
Doravante descansa meu cajado de
peregrino.
Ó Senhor, eu fiz fielmente a
peregrinação.
Pela penitência e pelo arrependimento
Reconciliei-me com os homens e entreguei
Meu coração.
Foi meu arrependimento coroado com
bênçãos.
Que Minha Música seja ouvida pelos
homens.
A graça da salvação é concedida ao
penitente
Ele vai em paz e abençoado.
O inferno e a morte eu não temo
Pois, na minha vida inteira está próximo
o Senhor.
Aleluia! Para sempre!
Aleluia! Para sempre!
Salve! Salve!

































A Graça Milagrosa, Salve!

Manipular imagens: Uma prática política

Alterar fotos para encenar realidades inexistentes é prática frequente de alguns fotógrafos. Essa alteração pode ser técnica, quando se manipula as imagens adulterando os conteúdos no processo de impressão, ou pode ser cênica, quando se mexe na cena que se vai fotografar sugerindo-lhe uma cena inexistente, mas de maior teor dramático e impacto. No excepcional O Instante Certo a escritora Dorrit Harazim nos apresenta alguns exemplos de fotógrafos que se notabilizaram para história com grandes trabalhos, mas que também eram manipuladores desavergonhados. Durante a Guerra Civil americana os fotógrafos Alexander Gardner, Mathew Bradey, Timothy O´Sullivan e Andrew Joseph Russel constituíam o quarteto que alimentava os jornais de imagens dos horrores do fronte. Não raro estes fotógrafos, escreveu Dorrit, “ajeitavam com a mão a realidade, recriando cenas para lhes insuflar mais impacto ou para compensar a limitação tecnológica e a dificuldade de chegar ao local no momento da ação”. Como algumas câmeras exigia exposição de até oito minutos “tornou-se pratica não pecaminosa recriar cenas das batalhas já ocorridas”. As imagens eram vendidas ao público como flagrantes reais da carnificina. Outro grande manipulador era o norte-americano Edward S. Curtis. No monumental registro das tribos indígenas sobreviventes aos massacres que dizimaram nações inteiras de povos nativos Americanos, ele tomava o cuidado de apagar dos registros as marcas da modernidade e do contato do nativo com o colono que pudesse macular o seu projeto de mapear índios autóctones. É celebre uma de suas fotografias em que ele apaga do interior de uma tenda de um velho líder indígena um relógio que estava ao lado dos índios e sugeria o contato dos índios com os homens brancos. Há também outra forma de manipulação. Durante o regime do “Grande Timoneiro” a Rússia Comunista viu uma forma de manipulação que se tornou comum. Membros do partido comunista Soviético eram  pouco a pouco apagados das fotos oficiais com Stalin à medida em que se tornavam desafetos do regime. Há uma foto famosa que mostra esse processo de apagamento da história. Na primeira foto vemos: Nikolai Antipov, Stalin, Sergei Kirov, Nikolai Shvernik, e Nicolay Komarov. A foto foi feita em Leningrado em 1926. Décadas depois os lideres à volta de Stalin foram pouco a pouco sento apagados das fotos oficiais até restarem apenas Stalin e Sergei Kirov. Hoje isso seria mais difícil de acontecer, mas há uma forma de manipulação que estar em curso e ganha mais e mais adeptos. Há sempre novas formas de manipulação. Agora os líderes decidem quando, onde e como são fotografados. Todos eles têm seus fotógrafos oficiais e não se deixam fotografar fora do script determinado por seus marqueteiros e publicitários. Uma imagem mal intencionada ou um deslize nas encenações programadas pode por a baixo todo um trabalho de construção de imagem pública. Ninguém quer ser apanhado em flagrante de si mesmo. As imagens construídas pelas cabeças dos marqueteiros são as únicas admissíveis pelos políticos atualmente. Assim sendo, os políticos passaram a ser os donos de suas próprias imagens não deixando margem à interpretações e miradas indecorosas de fotógrafos não alinhados aos seus propósitos. 

Meu pai

Minha mãe me ligou hoje para dizer que o meu pai havia morrido. Eu sabia que ele estava gravemente doente. Nos últimos tempos ele que sempre esteve ausente, ligou para o meu irmão, que é mais remediado do que eu, para lhe pedir dinheiro para um tratamento de câncer. Isso tem 4 meses. Até onde soube ele estava se tratando. Mas hoje, a sua prima, que cuidava dele, o encontrou morto. Nunca tive grande intimidade com ele. Éramos distantes. Não porque havíamos brigado; simplesmente porque nunca chegamos a ser de verdade uma família. Ele era um homem sem brios. Um tipo todo mal talhado para a vida em família. Os seus únicos prazeres eram a bebida e o jogo. Coisas que abomino. De lá ele tirava os únicos sentidos para a sua vida. A última vez que o vi foi há 2 anos. Ele continuava o mesmo, só que mais maltratado pelo tempo. Nunca em todos os momentos que o reencontrei depois da separação dele com minha mãe, cheguei a sentir qualquer coisa que pudesse ser aproximado com o sentimento de um filho por um pai. Morrerei sem saber que sentimento é esse. Assim mesmo não pude deixar de me entristecer quando hoje chegou a notícia de sua morte. Apesar de nossos desencontros lamento muito saber que ele morreu sem que alguém lhe amparasse a cabeça, segurasse a mão ou escutasse o seu último suspiro. Não desejo a ninguém morte igual. Tudo o que posso fazer agora é seguir a vida e lamentar que as coisas tenham sido como foram para nós e desejar que ele descanse em paz.

Internet e fotografia

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De tempos em tempos rola na internet uma foto que pelo número de curtida que recebe é considerado por alguns como a melhor fotografia de todos os tempos. Dia desses foi esta foto que ilustra o posto a maravilha que assombrava os amantes da “fotografia artística”. Sinceramente, não veja nada de excepcional nessa foto. Ela fica bem em propaganda de automóveis, mais que isto, é forçar, demasiadamente, as suas pretensas qualidades. Imaginar que ela figure como a "mais perfeita do mundo", é no mínimo, um exagero. Um grande exagero. Chamem-me de careta, obtuso, ranzinza, diga-me que estou velho e carrancudo, mas não posso aceitar que isso seja mesmo o melhor que podemos fazer em fotografia, seria um acinte a Paul Strand, William Klein e outros grandes mestres. Posso, porém, imaginar o que faz com que alguns vejam nessa foto algo extraordinário. Em tempos de selfies e das fotografias do prato que vamos comer ao almoço, exibindo-nos a todos como se a sociedade nos tivesse transformado em seres perturbados que retiram prazer de se exibir diante das multidões, alguma coisa que fuja a essa ordem é tido e havido como excepcional. Insisto, uma fotografia que tenha apenas como artifício de valoração a posição em que o expectador a vislumbra, não pode ser tomada como "a mais perfeita do mundo".  Tenho outros critérios para considerar que uma fotografia resultou bem. Um deles são o fato do fotógrafo retirar do plano contingente as coisas e alçá-las ao transcendente. Veja um pequeno exemplo do que digo com esse registo de Henry Cartier-Bresson. A banalidade do cotidiano foi aqui sacudida com a mirada precisa do fotógrafo. H.C.B transformou a arte fotográfica num território onde, como na literatura, só que de um modo ainda mais paradoxal, pensamento e sensação, ideias e imagens, inteligência e sensibilidade, conseguem uma bela e eloquente combinação para reflexão sobre a brevidade da vida e outros temas filosóficos.
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Viva o fotojornalismo

Não tardou para que surgissem polêmicas envolvendo a foto do ano do World Press Photo 2017. Já era esperado. Nenhuma premiação é unânime. Haverá sempre quem pense que a escolha poderia ter sido outra.

A critica mais contundente, partiu do presidente do júri do prêmio, que em artigo publicado no The Guardian, alegou motivos morais para não aceitar a escolha da foto de Burhan Özbilici, que mostra o assassinato do embaixador Russo na Turquia, como a melhor do ano.

Segundo Stuart Franklin, a foto incentiva e amplia a voz do terror no mundo e por isso ela não deveria ter sido escolhido.

Eu discordo. O fotojornalismo tem um papel que vai na contramão da ampliação da voz do terror no mundo. Ele constrange e põe em seu lugar os monstros que insistem em surgir.


Além disso, o fotojornalismo tem o dever de mostrar o que se passa com o mundo. E queira ou não é assim que anda o mundo, com pessoas a atirar contra os seus adversários e se gabando de verter sangue alheio em frente a um maior número de pessoas possíveis.

Camões

Canto I 106/106

No mar tanta tormenta, e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida!
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade avorrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme, e se indigne o Céu sereno

Contra um bicho da terra tão pequeno?

Por que fotografo?

Para dar expressão ao meu sentido estético. 

Para não esquecer

Ir à escola, estar com os amigos e tomar posse da herança cultural que os tempos nos deixaram, deveria ser a coisa mais acessível do mundo. No entanto, não é. Nem sempre há escola para ir. Quando há, nem sempre ela é devidamente acolhedora. Em outros casos, como o que sucedeu nos EUA, a escola se nega a aceitar a cumprir o seu dever.

Foi isso o que se passou em Little Rock, Arkansas em 1957. Naquela data a população local se negou a cumprir uma ordem judicial que dava plenos direitos a alunos negros de frequentarem escolas que outrora eram segregadas.


Na foto de Burt Glinn, vemos um jornalista entrevistando uma das nove estudantes afro-americana tentando frequentar a Little Rock Central High School, após o caso Brown vs Conselho de Educação, ser considerado inconstitucional. As crianças só terminaram aquele ano letivo porque o presidente Eisenhower interveio e mandou para cidade uma junta militar para servir de proteção federal às crianças, contra o ódio de alguns brancos.

Foto: Burt Glinn. Little Rock, Arkansas 1957.

E por falar em turbante


Salva-vidas para os náufragos.

O povo anda pedido nomes para salvadores da pátria. Não faltam eleitos para o posto.

Lá em A Vida de Galileu, Brecht escreveu: "INFELIZ A NAÇÃO QUE PRECISA DE HERÓIS".


Estou de acordo com o dramaturgo.

Com a palavra Miss Paglia

"A civilização é definida pelo direito e pela arte. As leis governam o nosso comportamento exterior, ao passo que a arte exprime nossa alma. Às vezes, a arte glorifica o direito, como no Egito; às vezes, desafia a lei, como no Romantismo.

O problema com abordagens marxistas que hoje permeiam o mundo acadêmico (via pós-estruturalismo e Escola de Frankfurt) é que o marxismo nada enxerga além da sociedade. O marxismo carece de metafísica – isto é, de uma investigação da relação do homem com o universo, inclusive a natureza. O marxismo também carece de psicologia: crê que os seres humanos são motivados apenas por necessidades e desejos materiais. O marxismo não consegue dar conta das infinitas refrações da consciência, das aspirações e das conquistas humanas.

Por não perceber a dimensão espiritual da vida, ele reduz reflexivamente a arte à ideologia, como se o objeto artístico não tivesse outro propósito ou significado além do econômico ou do político.


Hoje, ensinam aos estudantes a olhar a arte com ceticismo, por seus equívocos, suas parcialidades, suas omissões e ocultos jogos de poder. Admirar e honrar a arte, exceto quando transmite mensagens politicamente corretas, é considerado ingênuo e reacionário. Um único erudito marxista, Arnold Hauser, em seu épico estudo de 1951, A história social da arte, teve bom êxito na aplicação da análise marxista, sem perder a magia e o mistério da arte. E Hauser (uma das influências iniciais do meu trabalho) trabalhava com base na grande tradição da filologia alemã, animada por uma ética erudita que hoje se perdeu."

Retirado daqui 

Interesse

Interessa-me a fotografia centrada nos aspectos artísticos. Por artístico entendo a fotografia que diz muito mais do que aquilo que se pode perceber à primeira vista.

As ilusões fotográficas

Quem gosta de fotografia não pode deixar de pensar que ela, além de encantar, também tem o poder de induzir os espectadores em erro quanto às qualidades das pessoas e objetos fotografados.


Sabem muito bem disso os políticos que hoje não dão um passo sem ter ao seu lado o seu fotógrafo oficial. Ninguém quer correr o risco de ter sua imagem desfigurada por uma foto que sugira o indesejado.

O artístico não exclui o social


Quando falo de artístico em fotografia, algumas pessoas, logo associam isso à exclusão dos conteúdos socialmente relevantes. Nada pode ser mais equivocado do que este pensamento. A fotografia pode muito bem denunciar conteúdos sociais e ainda assim estar carregada de mensagens de índole artística.

Pobreza, violência, desigualdade são temas que importam a fotografia artística. Mas quem a faz, pensando apenas na mensagem imediata, não nos deixa ver que ela pode ir além de si mesma e inscrever-se em um tempo sem idade.

Compreendo que se queira fazer da fotografia uma arma de resistência e denuncia social. Isto é legitimo. Mas apenas mostrar, sem qualquer engenho, os desajustes sociais, não faz da foto um objeto relevante. Mesmo que se queria fazer isso com a melhor das intenções.

As fotografias de Joseph Koudelka da invasão de Praga e as cenas de guerra no Afeganistão de Anja Niedringhaus têm força. Exprimem ideias fortíssimas, a mais importante das quais é a de que a violência é sempre absurda e gratuita. Não vejo esta força que advém da linguagem estética nas fotografias de reportagem de hoje. A maioria delas são meros documentos literais, banais e infelizes em seus propósitos. Servem, quando muito, ao registro histórico.

As fotos de Anja Niedringraus que ilustram este post são poderosas e sobreviverão ao seu tempo, porque além de mostrar elas nos fazem ver os horrores da guerra. Elas são diferentes porque transmitem a mensagem de tal maneira que os espectadores a sinta em dimensão comovedora.


Lições

Há tempos deixei de encarar a fotografia como um passatempo. Hoje a vejo como uma saudável e estimulante forma de enriquecimento pessoal, que por seus ganhos, não deve ser computada nas horas de distração despretensiosa. Não são mortas as horas gastas em perspectivar o mundo e as pessoas que nele vão.

A boa literatura

Há textos que se eternizam. Os anos passam, os homens nascem, morrem e os livros sobrevivem a todos. Por isso que a boa literatura é uma arte atemporal. 

Cyrano de Bergerac é certamente um desses livros. Sua história é simples. Ela narra a malfada sorte de um homem apaixonado por uma mulher. 

Mas o livro não se resume a esse tema tão caro é precioso a literatura: o amor mal correspondido. Ele dá voltas em outros valiosos e indispensáveis temas. 

Um dos melhores momentos da trama, ocorre quando o inabalável caráter do herói, Cyrano de Bergerac, é posto em xeque por um corrupto senhor que o quer servil aos seus desmandos. 

A liberdade individual é então ardorosamente defendida por Cyrano num dos mais lindos e contundentes monólogos da literatura. 

Neste momento histórico em que o Brasil se encontra, esta mensagem deixada por Cyrano, bem nos pode serve de lição para nos recusarmos a vivermos de esmolas daqueles que nos querem sempre bajulando os seus favores.

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Não, muito obrigado!
Mas que fazer então?
Buscar um protetor poderoso, um patrão?
Ser como a hera que enlaça o carvalho robusto,
E lambe-lhe a cortiça e trepa então sem custo?
Usar, para atingir o cimo desejado,
de astúcia em vez de força? Oh! Não, muito obrigado.
Entrar para o canil dos poetas rafeiros,
Como eles dedicar versos aos financeiros
E fazer de bufão para que um potentado
Haja por bem servir? Oh! Não, muito obrigado.
Almoçar, cada dia, um sapo sem ter nojo,
Rustir o ventre por andar sempre de bojo,
Ter a rótula suja e fazer menos mal
Prontas deslocações da coluna dorsal?
Não, obrigado. Trazer o incensório suspenso
A um ídolo que viva entre nuvens de incenso?
Ganhar celebridade, aplausos e coroas
Num círculo de trinta ou quarenta pessoas?
Navegar, tendo em vez de remos madrigais
E, a tufarem-se a vela, os suspiros fatais
Das velhas, num derriço? Não, muito obrigado.
Ganhar fama de autor por haver publicado
Meus versos, mas pagando o livro aos editores?
Não, obrigado. Viver de esmolas e favores,
Como fazem alguns sandeus? Ver se alcanço renome
Com um soneto, se tanto, em vez de fazer mil,
Achar muito talento em qualquer imbecil?
Não, obrigado. Ter medo aos jornais, ser amigo
De elogios, dizer de mim para comigo:
“Ah, se o meu nome sair no jornal deste mês”!...
Calcular, ter na face impressa a palidez
Dos poltrões, preferir fazer uma visita
A bordar, carinhoso, uma estrofe bonita,
Ser da matilha, hedionda e vil, dos pretendentes,
Redigir petições e mendigar presentes?
Não, obrigado. Não, obrigado. Não, obrigado.
Mas...cantar. Mas viver num sonho alcandorado,
Calmo e feliz, o olhar seguro, a voz vibrante,
De quando em vez e, por capricho, petulante,
Por de trevés o feltro, e por um quase nada,
Dar um beijo na Musa ou dar uma estocada.
Nem um verso escrever que a mim me não pertença,
E apesar disso tudo, uma modéstia imensa:
Pagar-me com uma flor, ou um fruto apetecido,
Contanto que no meu pomar seja colhido,
E se enfim algum triunfo vier, mediante a sorte,
Não devê-lo a algum César por ser parte da corte.
E, em suma, desdenhando a hera vil que se esconde,
Não conseguindo ser o roble, cuja fronde
Mora perto do Azul e distante do pó,

Subir pouco, mas só, completamente só.

Licenciados em coragem

Na foto: Zoraide Portela, Fabíola Manoela, Eu e Zélia Malheiro.
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Eu tenho um grande orgulho dos meus alunos. Quase todos têm que vencer um leão por dia para continuar a perseguir o sonho de concluir o curso. Muitos pegam carona à beira da estrada, colocando em risco as suas vidas, para estar na universidade no horário determinado. Outros se desdobram em empregos fatigantes, que mal chega para cobrir os custos das infindáveis xérox, exigidas pelos professores, e assim garantir uns trocados para pagar as obrigações com a residência estudantil ou com o restaurante. Comprar livros é um luxo que eles desconhecem. Não sobra dinheiro para esse sonho. Todos têm que se valer com os que são ofertados pela biblioteca, que há tempos deixou de ser um lugar onde os ares recendem novidades. Como vemos, eles enfrentam toda sorte de dificuldade. Porém, não desistem. Insistem, mesmo ante todos os obstáculos, e se obstinam em triunfar. Tiro deles todos os dias uma lição. É possível vencer na vida, empenhando esforços contra as adversidades que nos amofina o ânimo. Hoje, mais uma vez, tomei provas dessa lição, quando vi a minha orientanda Fabíola Manoela, tomar lugar no púlpito do auditório da universidade e encerrar a sua jornada como aluna, para engrossar as fileiras da docência, com uma brilhante apresentação de TCC. Seus olhos cintilaram quando disse as últimas palavras, antes de ouvir os professores sentenciarem o seu sucesso. Suponho o que passou por sua cabeça naquele momento. Foram muitas noites insones. Mas ela conseguiu. Sou grato a ela pela parceria, e por ter acreditado em mim quando me confiou à obrigação de orientá-la. A todos os meus alunos obrigado por refundarem em mim todos os dias o gosto e o prazer pelo ensino. 



Passeio de Carro de Boi na roça do Sr. Almir

Ninguém sabe fazer festa tão bem quando o Sr. Almir. Entusiasta da cultura do Carro de Boi ele promove, vezes sem conta, festivos encontros com amigos, em torno da celebração desse veículo, que muitos achavam superado. Ontem estive, a convite de seu neto Juliano Lima, em mais um dos passeios promovido por esse carreteiro, sanfoneiro e contador de histórias. Lá também estiveram 46 carros de boi e uma centenas de pessoas. Todos gravitando à volta da alegria do Sr. Almir e família.

Admirável novo mundo



O advento da fotografia em massa contribuiu e muito para o abastardamento da fotografia. Antes as pessoas, pela raridade que era o acesso, faziam fotos procurando uma forma de expressão própria. Hoje o que mais vemos em termos fotográficos, é a tentativa das pessoas de copiarem umas às outras. Todos aspiram a ser pequenas Larissa Manoelas em posse de biquinho numa self, ou uma Kim Kardashian libidinosa, enfiada num biquíni cavado, porque assim se conquista mais likes. E são os likes que presidem a lógica que governa o sentido de qualidade de uma foto. Pouco importa o sentido de composição, a harmonia das cores, a originalidade do ângulo.Quanto maior a quantidade de likes, maior será o reconhecimento de que a foto possui algum valor. Isto sim é o que importa: os likes. Pelo visto a fotografia já viveu melhores dias.

Roger Ebert

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Apesar das opiniões em contrário, acho a figura do crítico indispensável. Assim, penso que deveria haver mais desses intrépidos pensadores nas revistas, nos jornais e nas tevês.

Mas normalmente as pessoas discordam dessa ideia. Isso porque, pesa sobre a figura do crítico a incômoda tarefa de dizer, às vezes, coisas que nem sempre agradam.

E, como todos sabem, mas fingem não saber, vivemos num mundo em que as pessoas, não toleram muito bem as opiniões discordantes.

Essa, porém é uma maneira defensiva de ver a crítica que não deixa o leitor/espectador, perceber que há qualidades na crítica que a torna relevante.

Uma delas é a sua capacidade de aguçar no leitor/espectador os aspectos mais secretos de uma obra que o olhar distraído deixou escapar.

Um gênio nesse ofício foi o americano Roger Ebert, que morreu há três anos. Durante mais de quatro décadas ele exerceu de forma ininterrupta no jornal e na tevê a tarefa de crítico de cinema.

Fez isso movido pela devoção à arte que o maravilhou nos anos de juventude e pelo deslumbre de sentia, naquele instante em que se sentava num banco de uma sala de cinema, com centenas de desconhecidos, que estava aprendendo uma forma de se conectar e simpatizar com outras pessoas, através dos desejos, dos sonhos e dos medos, de todos aqueles personagens que desfilavam diante de seus olhos.

"O GLOBO" FICOU CONTRA O TEATRO E A FAVOR DA CENSURA


Sérgio Britto e Fernanda Montenegro em “A Volta ao Lar” (1967), a peça que irritou “O Globo”

No dia 15 de setembro de 1967, com a "Ditabranda" no Poder, o jornal "O Globo", um dos mais tradicionais do Rio, assombrado com o que julgou "excesso" dos espetáculos teatrais, publicou o triste editorial Limites para o Sórdido, e um dia depois, na matéria Condenação Geral aos Excessos do Teatro (infelizmente, não foi possível localizar o autores de ambos os textos, talvez Roberto Marinho), reiterou sua posição em relação ao "escândalo" que certos textos teatrais estariam provocando na cultura do País, razão pela qual os atores estariam, assim, prestando um desserviço à arte nacional e à moral.

"O Globo" tinha em mente que o seu poder de convencimento e de persuasão era infinitamente maior do que os recursos parcos e humildes de alguns abnegados e dignos batalhadores, no caso os artistas do teatro, porque quando as ideias são disseminadas pelos formadores de opinião, num primeiro momento cultos e capacitados para julgar o que quer que seja, elas tendem a se manter fixas nas consciências - ideias que se alastram rapidamente como labaredas. Se "' O Globo' está dizendo, então é verdade", iludindo e desinformando a população menos esclarecida e alheia aos assuntos de teatro. "Eu tenho mais medo de um jornal do que de cem exércitos", dizia Napoleão. E é para ter, mesmo.

A peça da discórdia, neste caso específico, é "A Volta ao Lar", de Harold Pinter, de fato repleta de palavrões, para ilustrar uma relação familiar complicada, e os atores eram (adivinha?) Fernanda Montenegro e Sérgio Britto, a quintessência do que este teatro sofrido já produziu de melhor. Fernando Torres dirigiu o espetáculo.

Ora, se temos posta uma conflituosa e desestruturada questão familiar onde existem palavrões, o palavrão, neste caso, torna-se estritamente necessário para que se desenhe esta atmosfera no palco. Não há nenhum problema em relação a isso.

Fernanda conta em sua biografia "O Exercício da Paixão", de Lucia Rito, que naquela época vivia-se o medo generalizado. Eram ameaçados de morte, os atores representavam assombrados, algumas vezes vistoriando o palco com seguranças, outras andaram armados, e Fernanda por pouco não recebeu um disparo na cabeça quando dormia, da Segurança Nacional. Tempos sombrios, decerto, mas com a condescendência de ''O Globo'', que viu sordidez numa simples representação para um público adulto e capaz de interpretar, por si só, o que enxergava em cena.

Nem é preciso destacar os absurdos da Censura e o quanto ela foi maléfica e estúpida sobremaneira para a cultura nacional, o teatro inclusive.

O inesquecível editorial de ''O Globo'' é tão irrelevante que nem vale a pena copiar inteiro. Seguem-se apenas trechos:

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''Há algum tempo, os estádios de futebol detinham como que a exclusividade da montagem dos grandes corais pornográficos da cidade. O solista recitante puxa o coro entoando o palavrão mais adequado ao juiz da partida num instante dado, e sucessivamente, fração por fração, os da arquibancada ingressam no canto uníssono em fortíssimo sinfônico.

Mas, agora, a cidade já dispõe de outros locais, onde em matinês o público poderá diariamente ouvir não corais, mas solos de palavrões, em espetáculos que chamaríamos de pornografia de câmera. Confortavelmente instalados num teatro de poltronas estofadas e, por vezes, reclináveis, em ambiente de ótima acústica e ar-condicionado, os cariocas, a preços variáveis, ouvem atores e atrizes declamar os mais obscenos vocábulos da rica língua de Gil Vicente (que, aliás, foi autor bilíngue)

Será que não notaram os promotores de tais espetáculos que o uso imoderado do baixo calão estabelece quase sempre um conflito entre a cena e o texto? Em algumas peças desse gênero, o autor, para afetar intelectualismo, joga solto um monólogo "filosófico" - chavões sobre o absurdo da existência apanhados ao primeiro manual didático disponível -, tendo como sequência uma salva de palavras obscenas. E assim escorre a peça como aqueles detritos a caminho da estação elevatória.

Lamentável é que respeitáveis atores e sobretudo grandes atrizes nacionais (uma referência à Fernanda) liguem seus nomes a esse "basfondismo" que vai grassando do Passeio Público à Zona Sul.
É precisamente por isso que se pode classificar de obscenos esses espetáculos. Neles, o palavrão é um fim, e não um meio.

As famílias fogem do teatro, que parece preferir conquistar outro público - o dos amantes da morbidez catalogada nos tratados de Psiquiatria. Entre o teatro água-com-açúcar e o "pornodrama", existe um meio-termo válido. Alguns empresários não se dispõem a identificá-lo. Se tal situação persistir, haverá um momento de ruptura, com todos os inconvenientes que as medidas repressivas acarretam.

Que tal racionar voluntariamente o sórdido, o chulo? Não seria um movimento dessa ordem lançado agora, obra de preservação de autênticos valores teatrais? (...) Esperamos que certos empresários não transformem o teatro em criação de suínos. Há limite para tudo. A sociedade tem o dever de se defender contra os abusos."

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É preciso sempre recordar o passado, senão ele volta.
Uma matéria jornalística tem, entre outras coisas, essa finalidade: ela vira documento.
Enfim, nada mais a acrescentar.