Na natureza



Fotos: Rogério Soares / Caetité 30 de Abril 2015.

Valhacouto de canalhas

Foto: Robert Capra

"O patriotismo" escreveu Samuel Johnson "é o último refúgio dos canalhas". A esse valhacouto junta-se os bairristas, que são aqueles que pregam as supostas virtudes de sua terra, esquecendo-se, por decoro ou mau-caratismo, as inconvenientes verdades, que por ventura desminta as melhores qualidades dos sítios que se imaginava imaculados.

O menoscabo de si próprio é uma forma de grandeza que os patriotas vez por outra deveriam experimentar. É um lembrete que nos traz à terra e a todos nivela por igual. Todavia muitos ainda pensam estar no melhor dos mundos possíveis, e não se permite a crítica de sua pátria ou de sua cidade. Satisfaz-se assim com as ilusões que, convenientemente lhes preenchem a algibeira, negando todas as evidências de vícios e malfeitos de sua “terra amada”.

Mas a verdade das verdades é que: em essência não há lugar no mundo, por mais belo e próspero que pareça, que não pese vulgaridade, orgulho, falsidade e vergonha. Dotou-nos a todos o destino dessa má sorte. Nisso estamos rendidos. Mesmo que os patriotas neguem cegamente as evidências, e os bairristas finjam não ver as verdades, elas continuarão lá.

Vida-circo


Foto: Justin Bartels
.
Deve ser bom poder ir à vontade para qualquer lado. Estar sempre a guiar-se pela ponta do nariz e deixar-se ir, sem saber existir alguém ou alguma coisa, que possa interferir em nosso caminho. Querer ir a norte e ir a norte. Querer ir a sul e ir a sul. Percorrer assim caminhos, sem dar noutro lugar a não ser aquele traçado de véspera. Deve ser bom poder ir estrada afora, ter o pó, o sol, a chuva, o vento e um horizonte sem fim a acarinhar nossa autodeterminação. Estar ali entre essas coisas miúdas deve nos dar a certeza do nosso tamanho. Há de ser bom estar por lá onde temos a medida certa. Melhor do que estar a escrevinhar ofícios à junta ou a apanhar migalha ao chão, fingindo que os salamaleques são devidos a quem lhe paga o repasto. 

Prestar ouvidos

Andasse a tomar notas das falas de minha vó e por essas horas já teria um livro de poesia.

Mais-valia



 Foto: Dani Shitagi
.

Uma lógica perversa vem reduzindo todas as coisas ao sagrado critério da funcionalidade. Da arquitetura moderna e seus discursos sobre a praticidade do meio, às escolhas paternas de escolas de músicas para os filhos, porque estas desenvolvem o raciocínio lógico; a arte de nosso tempo sucumbiu ao discurso do utilitarismo e só é consumida se "servir para alguma coisa”. O que conta mesmo nas artes de hoje são apenas os seus aspectos práticos, funcionais e utilitários.

E quem diz funcionalidade na arquitetura e na música diz literatura, cinema. Basta ver nas escolas como o cinema foi apequenado. Hoje assiste-se um filme apenas para que este aluda a um assunto que se quer discutir. Nas universidades, a literatura deixou de ser o elã despretensioso, para rebaixar-se aos discursos panfletários de moralistas.

A ninguém é suposto a ideia de que a escolha de uma leitura ou de um filme se dê pelo mero prazer subjetivo que este provoca. Aos discursos utilitaristas é preciso algum valor aderente ao objeto artístico para que esse adquira legitimidade. Mais não é isso que realmente torna a arte valioso. Todas as vezes que predominar o fim na arte, escreveu Kant, teremos “beleza aderente” a obra. Entenda-se fim aqui como aquilo que têm utilidade prática na vida. Quando não há predominância do fim, temos “beleza livre”, desinteressada.

E é a esse último modo de ver a arte, privada de interesse, que a torna indispensável. Sem estar sujeita a priori a imposições de conteúdo, forma e outros condicionantes, a arte se basta. Nessa concepção ela não serve para nada, e quanto menos servir para alguma coisa mais valiosa será. Não se reduzindo a uma realidade circunstancial a arte livre dos conceitos utilitaristas, contribui para formar uma imagem do mundo, das pessoas e das relações, tão complexas, em sentido universal. 

Muhammad Ali



Analisando sob o ângulo de um simulacro cênico, o pugilismo de Muhammad Ali, assumirá um daqueles aspectos  de fatos reveladores que, nos esclarece imensas questões sobre a vida e a luta que devemos travar contra os maiores obstáculos, para permanecermos simplesmente em pé.

A vida é caos



Nunca imaginei fazer um curso de datilografia - os mais jovens não sabem o que é isso - até fazer um. Nunca ocorreu-me, mesmo naqueles momentos de divagações a que todos nós estamos sujeitos, a possibilidade de ir à Itália, até que esse dia improvável chegou. Em tempo algum pensei em fazer um curso universitário, antes de fazer um curso universitário. Jamais ocorreu-me ser professor universitário; abrir uma empresa e acabar (ao menos momentaneamente, ou não) coordenador pedagógico de uma escola rural de um distrito de minha cidade, que antes do trabalho, jamais havia posto os pés, mesmo vivendo na mesma terra a mais de 12 anos.

Como as vidas são íntimas e nenhuma é igual a outra, deduzo que a alguém sucede os caminhos não serem tão tortuosos, nem assimétricos ou irregulares como os meus. Muitos já nascem fadados a uma vida sem muitas surpresas. Do berço ao túmulo poucos percalços acidentam sua rota. É o caso dos monarcas, cujas vidas já se sabe de véspera, mais ou menos, o seu fim. Veja-se a propósito o burburinho real com o nascimento do príncipe George, terceiro na linha de sucessão do trono Inglês. Ninguém ousa dizer que sua vida é imprevisível. Mesmo que não venha a se tornar rei, como se supõe, será improvável uma rota irregular em sua existência, que o desvie do fadário real e de todas as suas obrigações encarrilhadas.

Já a nós, pobres mortais, a vida não é regida por uma ordem prévia, mas se faz sentir pelas circunstâncias que vão ora aqui, ora ali, descrevendo ao acaso, uma órbita improvável. Censuramos a vida por essa volubilidade. Frequentemente nos queixamos por não a vê-la como queríamos. Esbravejamos, berramos e maldizemos a sorte, por nos impor fardos que sentimos, demasiadamente, injustos. Tudo isso, para descobrirmos depois de muito tempo, que não adianta queixumes. Os lamentos não nos traz de volta a fortuna, que imaginávamos estar destinados. Antes, revela-nos, que jamais chegamos a possuir sorte maior do que a de estarmos vivos e que esta dádiva tem um preço. Nec semper lilia florente é a expressão cunhada por Ovídio na Arte de Amar para dizer que nem sempre as coisas nos são favoráveis. Contentemo-nos com isso. Nem todos escapam a fortuna. Muitos estão ao sabor do acaso.

E agora o que a vida me reserva?

Basbaques

.

Uns dizem vá pra Cuba. Outros vá pro SUS. Uns dizem ele é comedor de criancinhas. O outro responde que ele é um capitalista selvagem. Uns dizem oligarcas de mierdas, crente que é o outro quem incita o ódio. Em toda parte há basbaques, mas em nenhum outro lugar há tantos quanto na política.

Vincar a memória

Foto: Sally Mann, Deep South

Há mais de 20 anos deixei a Paraíba. Nunca mais retornei às cidades que me viram miúdo aprendendo a falar e a andar. Não foi por não querer, ou por falta de oportunidade, que não retornei à minha terra natal. Foi por medo.

Há muito botei na cabeça que se um dia eu retornar às cidades que foram a levedura de minha infância, estarei ameaçando com isso a imagem afetiva que, desde o meu último dia naquelas terras, eu trago na memória. E são ternas. Lindas e amáveis essas imagens.

Um sentimento estranho me faz crer que posso ser traído por uma verdade incomoda e descobrir que as belezas que um dia eu julguei ter vivido não passavam de alucinações de uma mente sequiosa de ilusões capazes de tornar o presente suportável, por já ter vivido um passado satisfatório. Seria duro demais perder a ilusão.

As emoções que produziram aqueles momentos são irrepetíveis. Só por isso é sempre grande o impulso que nos surge para cristalizá-los tornando perenes as emoções que produziram instantes líricos. Voltar lá seria o mesmo que viver de outra maneira aquele ambiente comprometendo assim a minha lembrança de momentos inesquecíveis.  

Não sinto o mesmo temor a outros lugares. Ao contrário sinto até vontade de rever lugares que há muito tempo visitei. Goiás Velho, Veneza, Caldas Novas, Jundiaí... Meu medo é o de retornar às paisagens da infância. Temo que elas se desmoronem sobre a novidade que se me apresentará.

Arte religiosa

Pintura: São Francisco em meditação. Francisco de Zurbáran 
.
Perdi a fé nas religiões em algum lugar que hoje já não me ocorre retornar para recuperar. Porém, essa perda não me fez menos admirador da arte religiosa ou da cultura artística nascida das religiões. As expressivas e extasiantes representações das cenas bíblicas feitas por Caravaggio, como a crucificação de São Pedro, os tormentos de Santo Antão de Michelangelo, o simbolismo mágico das imagens intensas de Francisco de Zurbarán, jamais me foram indiferentes. Estou de acordo com José Ricardo, que acredita que: "A arte religiosa não é patrimônio de qualquer religião ou igreja mas patrimônio da humanidade". 

O longo baile dos amantes.

.

A longa tradição das histórias de amor que a literatura nos legou sempre envolveram amores impossíveis. Romeu e Julieta, Tristão e Isolda, Cyrano e Roxane, Ana e Vronsky são apenas alguns exemplos de uma interminável lista de desencontros. Raramente o amor conjugal motivou os escritores histórias com algum encantamento lírico. Os dramas adúlteros ocupam com mais força a cena romanesca. Uma exceção à essa larga tradição parece ser Cartas a D. do escritor e filósofo André Gorz. O livro reconta o encontro e os momentos que o escritor partilhou com sua mulher Dorine em quase sessenta anos de matrimônio. O drama da história fica por conta da parceria dele ao lado dela durante os piores momentos do estágio de uma doença degenerativa que prenunciava o fim dos laços que os uniram durante toda a vida. Num tempo em que relações se liquefazem, onde até o amor é líquido, histórias como essa rareiam e provam que boa literatura não se faz apenas com intenções amorosas ardentes, mas com entrega e devoção a coisa amada.

"Nossa história começou maravilhosamente, quase um amor à primeira vista. No dia em que nos encontramos, você estava acompanhada de três homens que pretendiam jogar pôquer com você. Você tinha cabelos auburn abundantes, a pele nacarada e a voz aguda das inglesas.

Tinha acabado de chegar da Inglaterra, e cada um dos três homens tentava, num inglês sofrível, captar a sua atenção. Você se mantinha soberana, intraduzivelmente witty, bela feito um sonho. Quando nossos olhares se cruzaram, eu pensei: "Não tenho chance nenhuma com ela". E logo soube que o nosso anfitrião já a havia prevenido: "He is an Austrian Jew. Totally devoid of interest".

Um mês depois cruzei com você na rua, fascinado por seus passos de dançarina. Depois, numa noite, por acaso, eu a vi de longe, saindo do trabalho e descendo a rua. Corri para alcançá-la. Você andava rápido. Tinha nevado. O chuvisco fazia cachos nos seus cabelos. Sem pôr muita fé, eu a convidei para dançar. Você simplesmente disse sim, why not. Era 23 de outubro de 1947.

Meu inglês era desajeitado, mas passável. Tinha se enriquecido graças a dois romances americanos que eu acabara de traduzir para a editora Marguerat. Durante essa nossa primeira saída, percebi que você havia lido um ito, antes e depois da guerra: Virginia Woolf, George Eliot, Tolstói, Platão...

Falamos de política britânica, das diferentes correntes dentro do Partido Trabalhista. De imediato, você já sabia distinguir entre o que é acessório e o que é essencial. Diante de um problema complexo, a decisão a tomar sempre lhe parecia óbvia. Você tinha uma confiança inabalável na justeza dos seus julgamentos."

(...)

O belo consolo

.
O poeta e romancista alemão Hölderlin escreveu: “O belo consolo de encontrar em uma alma o meu mundo, de abraçar em uma imagem amiga toda a minha espécie.”. O que pode querer dizer essa frase soube há dias atrás quando vi uma menina de 14 anos lendo Fahrenheit 451. Não posso descrever o meu contentamento. De repente me peguei pensando irmanado em espírito literário com aquela jovem. Quase não contive o impulso de lhe saudar dizendo: minha irmã, minha igual.