Da des-esperança de dias melhores

Querendo meter alguma ordem à minha cabeça para fazer de meu voto uma coisa útil, esforcei-me em ouvir os candidatos à presidência. Assisti debates, li acusações e contra-acusações. Avaliei propostas, pesei históricos, mas, mais do que isso, observei nos candidatos, seu comportamento de campanha. Do que vi e li restaram-me a convicção de que dissimular, enganar, fingir e fechar os olhos aos defeitos da sujidade dos partidos, a ponto de apreciar e admirar grandes vícios como grandes virtudes, foram as ações mais vitoriosas nessas eleições. 

Renúncia

Foto: Lucien Clergue, 1965
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"Fiz a aprendizagem da minha condição e, com passividade absoluta, acatei leis antigas. Aprendi o meu papel no casamento e na cama. Fui uma deusa morta, não uma mulher viva. Distribuí sorrisos, fiz sopas, massas guisadas, bolos de erva-doce, lavei copos e pratos, estendi cuecas, meias, lençóis; à noite, abri as pernas, arfei de cansaço e aborrecimento, recebi o esperma conjugal, virei-me para o lado e adormeci. Mas a máscara ainda não estava enterrada na carne do meu rosto. Numa noite de Verão, raspei os nós dos dedos na parede até os ver sangrar, mordi os braços, cuspi no espelho, arranquei a roupa do corpo e, assim nua, fugi. Uma desconhecida encontrou-me no largo da aldeia, encolhida junto de um canteiro de goivos. Levou-me para casa, lavou-me as feridas. Depois, sem nada perguntar, explicou-me o óbvio: não há maior tragédia na vida de uma mulher do que a renúncia; antes o desespero e a loucura."

Invocando imagens dolorosas, Ana Cássia Rebelo, reclama um desfasamento da condição do feminino às práticas de submissão a um modo de vida opressivo. Seus textos me encantam. Sua escrita me desenfastia da realidade e me proporciona perspectivas novas entre coisas mínimas.Como é bom lê-la. Como é bom encontrar uma escritora de verdade.

Celebração a liberdade.

Walt Whitman celebrou em sua literatura a liberdade, a espontaneidade, a rebeldia, o sofrimento, contra uma ordem institucional dominada por valores hipócritas e uma racionalidade utilitária. Mais importante do que o prazer, era a liberdade e a possibilidade de sermos nós próprios nem que fosse à custa de sacrifícios e sofrimentos. Fernando Pessoa, discípulo confesso de Whitman celebrou a sua lição com um poema arrebatador que em tudo dignifica os ensinamentos do mestre.

SAUDAÇÃO A WALT WHITMAN

(...)
Nunca posso ler os teus versos a fio... Há ali sentir de mais...
Atravesso os teus versos como a uma multidão aos encontrões a mim,
E cheira-me a suor, a óleos, a actividade humana e mecânica
Nos teus versos, a certa altura não sei se leio ou se vivo,
Não sei se o meu lugar real é no mundo ou nos teus versos,
Não sei se estou aqui, de pé sobre a terra natural,
Ou de cabeça p’ra baixo, pendurado numa espécie de estabelecimento,
No tecto natural da tua inspiração de tropel,
No centro do tecto da tua intensidade inacessível.

Abram-me todas as portas!
Por força que hei-de passar!
Minha senha? Walt Whitman!
Mas não dou senha nenhuma...
Passo sem explicações...
Se for preciso meto dentro as portas...
Sim — eu franzino e civilizado, meto dentro as portas,
Porque neste momento não sou franzino nem civilizado,
Sou EU, um universo pensante de carne e osso, querendo passar,
E que há-de passar por força, porque quando quero passar sou Deus!

Tirem esse lixo da minha frente!
Metam-me em gavetas essas emoções!
Daqui p’ra fora, políticos, literatos,
Comerciantes pacatos, polícia, meretrizes, souteneurs,
Tudo isso é a letra que mata, não o espírito que dá a vida.
O espírito que dá a vida neste momento sou EU!

Que nenhum filho da puta se me atravesse no caminho!
O meu caminho é pelo infinito fora até chegar ao fim!
Se sou capaz de chegar ao fim ou não, não é contigo, deixa-me ir...
É comigo, com Deus, com o sentido-eu da palavra Infinito...
Prá frente!
Meto esporas!
Sinto as esporas, sou o próprio cavalo em que monto,
Porque eu, por minha vontade de me consubstanciar com Deus,
Posso ser tudo, ou posso ser nada, ou qualquer coisa,
Conforme me der na gana... Ninguém tem nada com isso...
Loucura furiosa! Vontade de ganir, de saltar,
De urrar, zurrar, dar pulos, pinotes, gritos com o corpo,
De me cramponner às rodas dos veículos e meter por baixo,
De me meter adiante do giro do chicote que vai bater,
De me (...)
De ser a cadela de todos os cães e eles não bastam,
De ser o volante de todas as máquinas e a velocidade tem limite,
De ser o esmagado, o deixado, o deslocado, o acabado,
E tudo para te cantar, para te saudar e (...)
Dança comigo, Walt, lá do outro mundo esta fúria,
Salta comigo neste batuque que esbarra com os astros,
Cai comigo sem forças no chão,
Esbarra comigo tonto nas paredes,
Parte-te e esfrangalha-te comigo
E (...)
Em tudo, por tudo, à roda de tudo, sem tudo,
Raiva abstracta do corpo fazendo maelstroms na alma...

Arre! Vamos lá prá frente!
Se o próprio Deus impede, vamos lá prá frente... Não faz diferença...
Vamos lá prá frente
Vamos lá prá frente sem ser para parte nenhuma...
Infinito! Universo! Meta sem meta! Que importa?
Pum! pum! pum! pum! pum!
Agora, sim, partamos, vá lá prá frente, pum!
Pum
Pum
Heia...heia...heia...heia...heia...


(...)

Desobediência civil



O demencial modo de vida americano, calcado no trabalho para o consumo (incensado como modelo de civilização e querido por todas as sociedades modernas) teve em Henry David Thoreau a mais franca das oposições. Sobre os escritor de Thoreau basta dizer que influenciou o pensamento pacifista de Gandhi e fundou as bases da consciência ambiental contemporânea. Seu livro - Walden ou, A Vida nos Bosques - é um manifesto contra a sociedade industrial e um libelo contra o consenso do American Way of life. Leitura obrigatória para quem pensa o mundo sem porteiras.

"Fui para os bosques viver de livre vontade,
Para sugar todo o tutano da vida…
Para aniquilar tudo o que não era vida,
E para, quando morrer, não descobrir que não vivi!"


— Thoreau

O código

Foto: Gordon Parks, Alunos muçulmanos, Chicago, Illinois, 1963.
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As privações não aparecem na fotografia; as hierarquias não aparecem nas fotografias; as pessoas não aparecem numa fotografia, apenas vemos os corpos sujeitos a um código; mas as sugestões virtuais desses corpos podem bem ser induzidas pelo fotografo a instigar a imaginação, a visão das privações, hierarquias e outros tantos males. Numa época em que as imagens se tornaram quase que onipresentes me interessa a fotografia menos como documento histórico, álbum de família e registro narcisistas. Interessa-me mais a fotografia enquanto enigma.

O popular no erudito

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Em todas as épocas, a cultura popular nutriu com um veio riquíssimo o manancial que alimentou a genialidade de grandes poetas e artistas de todo o mundo. Do Renascimento com Rabelais, Shakespeare, Cervantes, passando pelo Neoclassicismo inspirado nos mitos gregos, do Romantismo até o Modernismo nenhum movimento literário ignorou as contribuições da cultura popular. Incorporando elementos do folclore e da fala regional, fundindo imagens originais, ritos e lendas, a literatura dos grandes mestres perenizou as grandes manifestações culturais e de quebra vitaminaram com a força da imaginação venerável dos povos, a sua própria literatura. A recente reedição das obras completas do gaúcho Raul Bopp atesta a força da cultura popular e sua permanência na cultura como um todo. Bopp é autor do poema épico Cobra Norato (1931), inspirado em uma das mais conhecidas lentas do folclore amazônico. Esse poema, segundo Drummond, é um dos grandes projetos poéticos do modernismo Brasileiro. Alguns atribuem a ele o feito de ligar o movimento Modernista ao restante do Brasil.

As lições de Ulisses

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O dramático retorno de Ulisses à Ítaca é cheio de reveses. Tendo vencido todos, ele ainda haverá de enfrentar o maior deles, a reconquista de sua casa assediada por forasteiro que cortejam a sua esposa. Disfarçado, pelas razões que todos conhecem, ele terá que provar quem é para retomar o seu posto. E a que expediente ele recorre para fazer isso? Ele invoca o passado. É a sua vida pregressa ao cerco de Troia, às suas memórias de infância, as experiências de vida ao lado de sua mulher que o permitirão penetrar na sua terra e lhe assegurar as últimas vitórias sobre os usurpadores de seu trono. A sua velha ama reconhece-o graças a uma cicatriz que tem desde criança, Penélope reconhece-o devido a um segredo que só eles partilham a respeito da construção da sua cama, o pai reconhece-o quando o filho começa a nomear os nomes das árvores que aquele lhe ensinou quando era criança. E não esqueçamos Argos, o seu fiel cão. As aventuras de Ulisses partilham conosco a ideia de que a construção sólida de um futuro está intimamente ligada a valorização e reconhecimento de nosso passado. Haverá sempre um perigo a nos rondar cada vez que nos esquecermos do nosso passado. A nossa identidade, o nosso sentido de futuro está assegurado pelas memórias que temos de nossa vida. Perder a memória é perder o sentido de quem somos. Sem isso não poderemos jamais imaginar para onde vamos e qual o propósito de nossa vida. Além disso, nossa terra estará sempre assombrada por ameaçadores intrusos sempre dispostos a nos deliberar os caminhos de nossa existência. Só há uma maneira de defendermos a nossa terra, tomar posse de nossas memórias e assegurar a sua perpetuação.