O SUPLÍCIO DE TÂNTALO


O que será melhor? Estar cheio de sede no meio do deserto, ou estar com um copo de água encostado aos lábios mas sem poder bebê-la? Ter sede é ter sede, seja em que circunstância for. Mas a penitência será maior se soubermos que temos a possibilidade de beber a água que não iremos beber. 

Daí ser preferível o estado de inconsciência perante um bem que nos falta, do que viver com a consciência da sua inacessível existência. A chatice está no raio do conjuntivo. Uma vida inteligente sem o modo conjuntivo seria menos inteligente mas muito mais fácil de ser vivida. E tanto me refiro ao presente do conjuntivo como ao pretérito imperfeito do conjuntivo ou ao futuro do conjuntivo. 

O modo indicativo dá-nos a realidade mas o conjuntivo dá-nos a merda da possibilidade. E se é verdade que é por via da possibilidade que nos elevamos a um nível de existência superior, também é por via da possibilidade que nos enterramos no pântano do sofrimento. Tivéssemos apenas o modo indicativo, passado, presente ou futuro e esse mesmo passado, presente ou futuro seriam simples, rasos, tão implacáveis como um nascer ou pôr do Sol. Diríamos "Eu fiz, faço, farei", "Eu fui, vou, irei", "Eu aceitei, aceito, aceitarei" com a mesma inconsciência mecânica com que a ninfa Eco repete os últimos sons de Narciso ou com a mesma determinação com que um animal cumpre as suas obrigações. 

Mas depois vem o conjuntivo e estraga tudo. Olha-se para o passado e pensa-se no que poderia teria sido, olha-se para o futuro e pensa-se no que poderá vir a ser. E, a partir daí, tudo se torna labiríntico, tortuoso, infinitamente complexo. 

Eu gosto do mito adâmico e não me desagrada a ideia de ser filho de Adão. Mas foi com Tântalo que começámos verdadeiramente a ser humanos.

Four more years

Democracia

fotografia da iemenita Bouchra Almutawakel
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Não acho a democracia o melhor dos modelos político. Não é o povo que realmente governa e decide. Grandes corporações e conglomerados empresariais manipulam aqui e alhures a marcha dos acontecimentos. Fazendo valer muito mais as suas vontades do que as necessidades do povo, eles desmentem, sem nenhum decoro, todos os dias, os fundamentos que sustem a ideia de que o regime existe para atender as demandas da maioria. Não precisa ter feito o Mobral para constatar que quem manda no mundo é o deus dinheiro. Os governantes de fato estão bem longe dos gabinetes políticos. Eles transitam por outra esfera social. A democracia é apenas uma festa popular engendrada nas massas para legitimar a farsa que é o governo do povo. Porém, diante da baixa qualidade dos regimes em oferta, não nos resta alternativa a não ser aguentar esse; pelo menos até que irrompa contra seu próprio peso os diques de contenção do inconformismo e faça surgir outro modelo, mais justo, menos fajuto. As notórias imperfeições da democracia, no entanto, são bem melhores, ou toleráveis do que as excrescências dos regimes totalitários, imperiais ou teocráticos que se alastram pelo mundo. 

O capitalismo não poupa ninguém

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Já não vai longe, pois nem tanto tempo se passou assim, em que todas as nações Ocidentais sonharam um dia em ser como a Grécia. Em tudo se invejava o país de Sócrates, Platão e Aristóteles. Da arquitetura monumental, passando pelas artes até chegar aos ideais de beleza. Os gregos construíram um ponto de viragem na civilização, que de tão vigoroso, pavimentou, os caminhos que abriram um novo mundo. Ninguém lhes ousava ultrapassa os feitos. Sabia-se de antemão a tarefa inglória que seria essa empresa. Às nações mais prosperaras comprazia-se com a imitação, deixando bem evidente, é claro, as fontes onde buscaram inspiração para tudo o que iam construindo a sua volta.  Não se temia o decalque. Nesse caso ele era, não só tolerado, como ainda representava um sinal de status. Poder imitar a Grécia era uma glória. Quem reproduzisse os modelos gregos de civilidade já eram bastante civilizados. Hoje, no entanto, a Grécia vive outra situação, bem menos invejável. Afundada numa crise financeira que parece não ter fim, todas as nações evitam comparações temendo o contágio das más notícias que projetam para os próximos anos um panorama trágico para nação que inventou a “tragédia”. O que os bárbaros não foram capazes de destruir em anos de tentativas frustradas contra a Grécia o Capitalismo não poupou. 

A ingenuidade de não haver sido revelado às coisas



Esforçamo-nos a vida toda por sermos bons, justos e honestos. Mas vêm as circunstâncias e nos arranca todas as nossas melhores determinações. Azar, acaso ou injustiça social, chamemos do que quisermos, o certo é que estamos à mercê de forças que, às vezes, não podemos, mesmo querendo, controlar. Alguns de vocês devem estar agora mesmo recriminando-me por julgar essas qualidades circunstanciais. Por certo vocês, se assim me avaliam, as têm como inatas ou indivisíveis de alguns homens, mesmo em situações opressivas. Pensam que os índios, as crianças, os religiosos, os santos e outras qualidades de homem, espelham aqueles dotes que vocês tanto almejam crer indissociável da alma humana. Creem-na, como uma marca divina, a única talvez, que os permitam aliar o homem a um deus todo poderoso criador do céu e da terra, bem como desse ser que insiste, em todas as suas fraquezas e vilanias, em contradizer as qualidades supremas do criador que os moldou. Se sentem assim a bondade, a justiça e honestidade tanto melhor para vocês. Não têm que lidar com questionamentos morais, sociais que desmentem, ao menos naqueles que não creem nos seus pontos de vista, na ideia de que o homem seja uma fonte inesgotável de bondade a toda prova. Teorias religiosas que nos persuadam das qualidades que de certo não temos dão-nos o conforto de não pensarmos além delas. Se seguros estamos de nossas convicções e cremos nelas, mesmo que isso não nos dê prazer, ao menos nos evita grandes preocupações, e afasta-nos a presença da dor de pensarmos em coisas que não deveríamos pensar. Tudo, portanto, resumi-se a entrega de nossas inquietações às respostas mais fácies. 

Mantra

Benditos os que não confiam a vida a ninguém

Barnardo Soares. Livro do Desassossego, p. 95.

Impostura literária


Um amigo recomenda-me a leitura dos poemas de certo Georg Trakl. “Leia os poema, mas evite seguir seu comportamento”. Não que eu acredite que os poetas estejam acima do bem e do mal, ou que suas vidas sejam exemplos para grandes coisas, mas todas às vezes que a recomendação de um autor vem seguida de um lembrete para se distanciar de sua vida, sinto que irei gostar muito desse artista. 

Não conheço esse poeta e não sei o que ele fez de tão cabeludo para merecer a recomendação de não ser seguido. Porém, me encantam, os autores malditos. Para mim há mais verdades naqueles que molestaram as certezas estabelecidas - e sinto que essas sejam as razões de tantas recomendações - do que naqueles que insistem na fossilização da vida. 

Os poetas e artistas em geral tornaram-se suspeitos, por não aceitarem passivos os arreios tirânicos impostos a todos àqueles que sentem de forma insuspeita a sua vida. Miller, De Quincey, Plinio Marcos, Genet, Bukovsky, Baudelaire, Rimbaud, Sade, Maquiavel, Hilst, Pavese, Passolini, e outros tantos, estão no rol desses infratores da moralidade vigente. 

Feito kamikazes eles se atiraram contra as instituições fajutas implodindo seus valores de fachada. Só por pressentirem a vida, da forma que ela lhes apresentava, insuficiente; insubmissa e intolerável, eles foram tachados de rebeldes, desordeiros, malucos, bandidos e outros adjetivos e qualificativos assepticamente moldados para distanciar o público do contágio de suas pragas. 

Para mim, tantas reservas, tentam invisibilisar alguém que por sua postura inconveniente tornou-se pernosa non grata ao status quo, e por imerecida justificativa foram lançadas à margem da sociedade. A melhor maneira de desmoralizar alguém é sempre distorcer a sua imagem. Dar-lhe os predicados que justifiquem a distância das maleitas que carregam aqueles malfeitores, bandidos, escroques e degenerados. Os julgamentos morais quase sempre são feitos com base nas aparências. Infringir os limites estabelecidos pela sociedade pode render àqueles subversivos, transtornos para o resto da vida. 

Tempos de escândalos são muitos


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De tempos em tempos somos sacudidos por escândalos, que os menos desavisados encontram parentesco com outros tantos casos semelhantes, que por momentos avexam a consciência nacional. A malta inteira se agita como um bando de bisões assaltados pelo predador, estourando o rebanho. Mas, logo em seguida, todos voltam a pastar pacientes e sossegados. Vivemos assim, contamos os dias, as horas e os meses mediante as vergonhosas ações de nossos homens públicos. Antes, durante e depois da redemocratização não contamos um único ano em que pudemos nos orgulhar da decência de qualquer um dos nossos líderes. As décadas estão todas cheias de delinquência. Incorrigíveis, insistimos nos erros do passado como se o tempo não trouxesse nenhuma lição, como se a história não existisse, como se a vida fosse um pasto em que as gramíneas suculentas são mais emergentes do que a vigília aos predadores.

É preciso mudar tudo para que nada mude.


Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
(...)

Os versos do poema de Camões se aplicam a quase tudo nessa vida, menos a uma esfera da nossa sociedade, que parece imune a todo tipo de mudanças: a política. Os líderes desse país encontraram uma maneira, muito eficaz, de emperrar as engrenagens da mudança e empenham todas as suas ações na manutenção de suas qualidades duvidosas.