A coragem adiada ou sob o abrigo do medo



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Talvez seja por meu ceticismo crônico, ou a simples falta de evidência. Seja lá qual a razão, o certo é que, não dou o menor ouvido às predicas de fim de mundo, que andam assustando as pessoas por aí. Ao se aproximar a apocalíptica data dos crentes do calendário maia, a única coisa que me acossa o juízo, é saber que esses messias, continuarão criando outras formas de dar cabo à existência humana, tão logo esse frenesi seja providencialmente esquecido. 

Estamos mesmo condenados a viver pelo medo, arrastando pelos séculos a firme esperança de prever ora em formatos de plantas ou tripas de animais, ou como agora nas fantasias de uma civilização pretérita, todas as nossas fraquezas de espírito e incertezas da alma. Não houve um único momento na história da humanidade em que os homens não deixaram de prever sinais de mal auguro em tudo. Investidos, como acreditavam, do mais puro sentimento, eles alardearam todo tipo de terror. Transformaram assim o mundo numa morada perpetua do medo. 

A julgar pelos presságios do passado, foi por um milagre, ou mero erro de cálculo - afirmam os empedernidos - que nos permitiu chegar, sãos e salvos ao presente. Porém, outros, abnegados visionários, muito bem dispostos, não perderam ainda, malgrado nossas esperanças, a determinação para consertar “todos os equívocos do passado”, e reinstauram, de tempos em tempos, uma nova previsão de catástrofe, que sucumbirá a humanidade, dessa vez sem sombra de dúvidas, para sempre. 

Enquanto muitos vão contando os fins dos dias eu passo as horas sonhando com as manhãs. Nada me demove a alegria de estar vivo e cultivando a vida. Quem deseja catástrofes vive em catástrofe. A única rota de colisão possível do homem é contra si mesmo e seus demônios. Em tempo, levo a vida desassombrado desses seres. 

Às Avessas

 
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Ando em descompasso com a realidade. Faltam-me os impulsos necessários para seguir aos muitos e afortunados lugares de desejo do mundo contemporâneo. Quedam-me outras paradas.  Detém-me, outros objetos, muito menos queridos pelas gentes. Não os julgo, porém, menos apetecível de cobiça por essa razão. Seria um parvo se assim o fizesse. Sinto apenas um fastio às coisas que a maioria não passaria sem. 
 
O resultado. Aos olhos do mundo moderno vivo uns sem números de tropeços, vexames e outras estultices. Embaraços que em vez de me fazerem corar - como muitos poderiam esperar - dão-me uma sensação de contentamento e alivio; pois não me sinto mesmo na vontade nem na obrigação de seguir pari passu, a vida contingencial que se me apresentam como ideal e segura. Aqueles que a seguem, hoje não as têm tão ideais e seguras assim. Sobram-lhes inquietações e tormentos. Falta-lhes a coragem de admitir.  
 
Imprimo outro ritmo à existência. Muito menos ambicioso como queriam alguns, e sonharam outros, mas, muito mais rico do que poderiam supô-las todos. A vida, contrariando todas as certezas, também se faz às avessas.


Das coisas que adoro fazer


Ocupo-me, de tantas coisas inúteis, que dia desses ainda terei a vida seriamente ameaçada por esse pendor. 

Indolente


Quando já me achava inteiramente recoberto de nomes pela vida, vem você e me rebatiza. 

Rede

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A rede faz parte da vida do Paraíba. Ela atravessa toda a sua existência. Ao nascer ele não pode contar com o luxo de uma cama, então é lançado ao balanço de uma rede, que lhe faz às vezes de berço.  Ao fim da vida esse utensílio doméstico, indispensável nas famílias nordestinas, que o salvaguardou de tantos desassossegos e desalentos da longa jornada da existência, é transformado em sua última companhia na morada final. Uma das cenas mais comoventes da peça Morte e Vida Severina, ocorre quando o viajante encontra pelo caminho um funeral de um lavrador que segue numa rede ao fatal destino.

- Dentro da rede não vinha nada,
Só tua espiga debulhada.
- Dentro da rede vinha tudo,
Só tua espiga no sabugo.
- Dentro da rede coisa vasqueira,
Só a maçaroca banguela.
- Dentro da rede coisa pouca,
Tua vida que deu sem soca
(...)

Depois de tanta parceria, tanto na vida como na morte, o nordestino não pode deixar de lhe render as devidas homenagens. Sobram-lhe motivos para admirar e benquerer o balanço manso de uma rede, seja à sombra de uma árvore ou ao abrigo de uma latada, não importa. Motivos que escapam àqueles que tiveram outras experiências de existência. Para muitos a rede se constitui no único alento ao corpo molestado pela fadiga. Ainda hoje é fácil encontrar na casa de qualquer nordestino uma rede espalhada em algum canto se oferecendo ao corpo. Lá em casa não existe apenas uma, mas várias. Em Rede de Dormir o estudioso da cultura popular Luís da Câmara Cascudo escreveu: "A rede é acolhedora, compreensiva, coleante, acompanhando, tépida e brandamente, todos os caprichos da nossa fadiga e as novidades imprevistas do nosso sossego. Desloca-se, incessantemente renovada, à solicitação física do cansaço. A rede colabora na movimentação dos sonhos". Lembro-me de minha avó. Em menina ela nunca soube o que era o aconchego de uma cama. Viveu boa parte da vida espinhosa de lavradora a meia, esperando o momento sublime de abrandar seu corpo trucidado pela lida, nos braços acolhedores de uma rede. Não me admira, portanto, que hoje aos 83 anos ela prefira uma rede aos largos espraiados de uma cama.