As voltas que o mundo dá

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Obama no histórico ônibus em que Rosa Parks foi presa em 1955 por ter se recusado a dar o seu lugar para um homem branco. Foto Pete Souza/Casa Branca.

Serge Gainsbourg a Jane Birkin

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Para lá de todas as coisas amáveis,
para lá de todas as coisas desejáveis,

a tua nudez na ponta dos meus dedos,
uma bola de fumo pairando sobre o piano
e cada poro teu tocado como se fosse
uma tecla, uma tecla emitindo o som
de cordas surdas, as tuas veias, cada
um dos teus nervos, e eu enredado
em ti como o insecto na teia da aranha,
para lá de todas as coisas definíveis,
os contornos do teu corpo à luz
de um tecido transparente, beleza
incomparável acossada pela fealdade
das notas, dos acordes atonais, para
lá de ti, para lá de mim, a paixão
capturada pelas máquinas fotográficas,
projectada numa tela à velocidade
iludente do cinema, para lá das salas,
para lá da luz, nós os dois denegridos,
deitados no quarto escuro da paixão.

Henrique Manuel Bento Fialho, A Dança das Feridas, Colecção Insónia, 2011.

Beleza

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Não tenho nenhuma resistência diante da beleza. Sou atraído facilmente pelas formas e gesto incomuns. No lugar de Ulisses teria me lançado ao mar. Alguns vêm um mal, apreciar sem reservas os apelos emanados, pela formosura das formas. Mas a esses, não consigo, sinceramente, entender. Para mim não há desproposito maior no mundo do que hostilizar a beleza. Há qualquer coisa de anormal naqueles que se ofendem com a apreciação do belo. Decorre daí talvez uma divergência de pontos de vista. As pessoas acham belo o que lhe apetece. Cada um está suscetível a apelos diversos. Uns se enamoram facilmente por um físico esbelto, outros não diriam o mesmo. A atração tem suas próprias e inapreensíveis razões. Belo para mim, no entanto, é aquela coisa à qual demoro o olhar. Belo é aquele objeto que me suspende, temporariamente, a razão e paralisa o fôlego. Meu belo não se resume aos encantos da simetria das formas, mas nas mil e uma, inacabadas formas, que destoam do comum e instauram o surpreendente. E há melhor razão para suspender o fôlego do que a apreciação de um corpo nu?

O real mais que real

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Algumas pessoas insistem em afirmarem que a ficção, em oposição a realidade, é o império do falso, do inverídico e do impalpável. Algo a que não se pode dá crença. Mas essa afirmação parece não se encaixar bem na personagem (portanto algo falso) que Rita Hayworth criou em 1946. No auge de sua beleza, Rita, aos 28 anos, deu vida a Gilda, criação que transbordava sensualidade e ousadia, numa época de grande repressão sexual. A máquina de fazer realidades através da ficção que é Hollywood botava em cheque, o discurso dicotômico, real x ficção. Gilda tornou-se, através do impossível ficcional, o alvo do desejo de dez entre dez jovens americanos do pós-guerra. Se a realidade é algo que se pode sentir através dos sentidos (tato, paladar, olfato, audição) nada foi mais real para aqueles jovens do que aquela presença ilusória criada pela câmara escura dos cinemas e que traduzia todos os seus desejos de uma forma que a realidade ainda não havia alcançado. Tanto é verdade isso que o slogan promocional do filme era: “NUNCA HOUVE UMA MULHER COMO GILDA”. Ruy Castro, admirador do filme lembra que a presença de Gilda nas telas da época só podem ser medidas em megatons, dada sua presença marcante: “os filmes americanos não mostravam uma mulher tão sensual e dadivosa. Seu impacto em 1946 pôde ser medido até em megatons: pouco depois da estreia do filme, a bomba que os americanos explodiram no atol de Bikini, no Pacífico, na primeira experiência nuclear em tempo de paz, foi batizada de Gilda, pela equipe que a construiu. Trazia, inclusive, um desenho de Rita na carapaça numa publicidade espontânea e sem preço.” A ficção, ao contrário da realidade, nos promove uma experiência outra das coisas, muito mais intensa e viva. Por isso os gregos acreditavam que a ficção era mais importante do que a realidade. A ficção por sua natureza inapreensível nos promove uma descoberta com o essencial das coisas. A realidade, pelo contrário, é o encontro com a aparência.