Andar para trás

Daniel Barry/EPA

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A luta pelo direito à liberdade sexual na Libéria sofreu um grave golpe essa semana quando a presidenta Ellen Johnson Sirleaf defendeu uma lei que criminaliza atos homossexuais em seu país durante uma entrevista ao jornal inglês The Guardian. Na Libéria o homossexualismo é delito punível com até um ano de prisão. Mas, novas propostas de lei querem endurecer ainda mais a repressão às liberdades sexuais. "Nós gostamos de nós mesmos do jeito que somos. Temos certos valores tradicionais em nossa sociedade que gostaríamos de preservar", disse a líder da nação Africana que ganhou no ano passado o prêmio Nobel da Paz.
 
Estranha declaração para alguém que se notabilizou por sua luta em favor dos direitos das mulheres contra “certos valores tradicionais” da sociedade. A pergunta que cabe agora é: Ellen Johnson ainda é merecedora de tal galardão? Para senhora Sirleaf algumas tradições, mesmo que engendre abusos, dissemine preconceitos e fira direitos individuais básicos, pode ser tolerada comodamente. Só na cabeça de um “Nobel da Paz” pode passar uma coisa dessas.
 
As discussões sobre os limites dos abusos contra os homossexuais na Libéria iniciaram quando um relatório do Departamento de Estado Americano, acusou o país de violações dos direitos individuais. De posse desses dados a secretária de Estado, Hilary Clinton decretou em dezembro passado que a ajuda americana na reconstrução da Libéria, devastada pela guerra civil, estaria condicionada ao respeito à liberdade sexual naquele país. Isso foi o bastante para que jornais da capital Liberiana iniciassem uma campanha difamatória em editoriais e artigos que descrevem a homossexualidade, que lá é chamado de “sodomia voluntária”, como uma “profanação” e uma “abominação” da natureza humana. Opinião, corroborada pela líder nacional.
 
Parece questionável que pretensas tradições culturais justifiquem crimes de ódio. Sob a chancela das tradições já se cometeram todo tudo de barbárie, vamos permitir mais esse? "Nos últimos seis meses, temos visto um aumento preocupante na retórica anti-gay, com ataques a indivíduos que lutam pelos direitos de liberianos se relacionarem com o mesmo sexo", disse Corinne Dufka, pesquisadora sênior de Human Rights Watch na África ocidental. No mês passado, informou a mesma reportagem do jornal The Guardina, houve pelo menos seis ataques homofóbicos na capital, Monróvia.
 
A ideia de tradicional pode ser, grosso modo, associada a certas práticas engendradas no seio de um grupo social, para lhe dar uma coesão. Porém, quando um contingente significativo dessa mesma sociedade já não mais aceita as tradições e questiona os seus valores não seria porque ela já começa a dar sinais de desgaste e precisa de reformas? A insensibilidade política, de mãos dadas, com o oportunismo eleitoral pode explicar declarações tão infelizes quanto a que deu a senhora Allen Johnson. As incendiárias declarações da presidenta, não ajudam em nada no esforço de reconciliação dos ativistas do direitos homossexuais e a sociedade conservadora que nega direitos e liberdades à quem não mais tolera a opressão.
 
Não é de hoje que Estados Africanos desrespeitam, em nome das tradições culturais, as individualidades. A homossexualidade já é ilegal em 37 países do continente. Por várias razões projetos de lei baseados em puro preconceito tentam restringir ainda mais os direitos individuais. Dez mulheres foram recentemente detidas em Camarões acusada de lesbianismo. Na Nigéria, as atividades homossexuais são punidos com até 14 anos de prisão. São absurdos como esses, que deixam em suspensão qualquer crença de que os homens, mesmo aqueles que foram vítimas de violação dos direitos humanos, como é o caso da presidenta Ellen, só são capazes de enxergarem a sua própria dor.

Há mais verdades nas fábulas do que na vida real

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Como professor, o meu esforço tem sido mostrar aos meus alunos, que eles devem, em muitas circunstâncias, pensar e agir como crianças. Não parece, mas essa não é uma tarefa fácil. Não entendam crianças aí como um ser imaturo ou imberbe. Essa é uma versão criada pelos adultos, que frustraram como crianças, e se envergonham disso. Entendam crianças como, alguém que enxerga a vida como um livro aberto, cheio de possibilidades. 

A verdadeira criança é traquina, buliçosa e aventureira. Ela não pára de perguntar e viajar nas maravilhosas fantasias que encobrem o mundo racional. A criança é aquele ser que dar beliscões no cérebro dos adultos, com perguntas embaraçosas como essa: “se o homem espantalho e o homem de lata não tem boca, como eles podem falar”. A criança é aquele serzinho que assusta cotidianamente as palavras com frases desconcertantes: “o balão morreu por falta de ar” ou “as palavras que rimam são aquelas que não se dão bem com as outras?”, “Podemos ser astronautas e ilusionistas ao mesmo tempo?”. A infância, portanto, não é um estágio passageiro da vida, e sim, aquele momento em que toda uma vida pode caber num livro sobre, tigres, por exemplo. 

Fico frustrado quando meus alunos intentam me dissuadir da ideia de que os bichos não falam, ou de que fantasmas e casas mal-assombradas são coisas falsas, irreais e ilusórias. Os seres fantásticos existem na medida em que eles encenam ações prováveis e possíveis. Devemos aprender as lições de Polônio em Hamlet que disse que com: “a isca da falsidade apanha a carpa da verdade. Assim nós, os entendidos, usando de cautela e circunlóquios, chegamos ao caminho por desvios”. E assim age a fantasia. Por desvios na razão atingimos a verdade. Não é fantástico? Despidos de verdades, falseando, trapaceando, podemos descortinar o mundo e encarar com destemor os desafios da vida. Por isso não devemos duvidar da existência desses seres maravilhosos. Eles existem, são tão reais quanto os ensinamentos que eles ilustram. E tão vivos quanto os sentimentos que encarnam. 

Há mais verdade nas estórias fantásticas do que no mundo real. Não acredito, portanto, em alguém que não crer na existência do Saci Pererê, Ogro, Pinóquio, Bruxas, Duendes e principalmente me revolto contra aqueles que insistem em querer me convencer de que o Pequeno Polegar não existe. Ora, isso já é demais. Para mim essas pessoas é que vivem no mundo das ilusões e sofrem grave enfermidade. Eu tenho certeza da existência desses seres. E principalmente creio que não existe apenas um Pequeno Polegar, mas vários, todos eles espertos e ágeis como o que li no livro de Perrault.  

Não entendo como as pessoas podem se tornar tão racionais a ponto de negarem o óbvio ululante. Eu vejo alguns desses seres todos os dias. Convivo com eles. Conheço ao menos duas bruxas, um dragão e quatro princesas encantadas, todas aguardando serenamente o seu príncipe. Ainda não vi unicórnio, nem fadas, mas creio que isso não seja motivo para desacreditar em sua existência, eles estão por aí, é certo. De alguns desses seres sou muito amigo. Outros, assisto a distância, com medo do que eles possam me fazer. Nem todos são bons. Há que se ter cuidado com os seres fantásticos. Sou tímido, mas gostaria de navegar um dia com Simbad ou Gulliver. Já li muitas vezes as suas histórias e fiquei enlevado. Ficaria encantado em conhecer Lilipute de perto na nobre companhia de quem lá chegou primeiro e nos trouxe a notícia desse mundo tão surpreendente. Enquanto esse dia não chega vou traçando planos para conhecer IL BARONE RAMPANTE que me observa da estante, enquanto escrevo esse texto, doidinho para que eu o acompanhe em mais uma grande aventura. 

Narcisistas, Voyeristas, Fetichistas, com quantos istas se faz uma sociedade?

Moça com brinco de pérola - estilizado
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Na ausência de uma plataforma midiática global que lhes arranque do anonimato, as pessoas encontraram um jeito de ganharem visibilidade, e se fazer percebidas em todos os gestos do cotidiano, elevando à última potência os sentimentos narcisistas. A exemplo do programa global, as pessoas do lado de fora, se esforçam dia a dia para aparecerem.  

Como não possuem nenhum atributo físico incomum, não têm qualquer talento musical, literário ou artístico de qualquer natureza, que as torne alvo dos holofotes da fama, elas se expõem narrando as trivialidades do cotidiano infeliz e maçante em que estão atoladas; aguardando com isso, a audiência de anônimos ou conhecidos. 

Em todas as redes sociais e aos quatro ventos elas anunciam, ensandecidamente,  que: “estou indo a academia... tenho que ficar gostosa igual à Juju” ou “aguardo impacientemente no hospital os meus exames”... “daqui a pouco vou curtir a naight”, escrito assim mesmo. As novas ferramentas da internet botou toda a manada de cabeça erguida. Agora a intenção não é mais observar a proximidade do predador, mas sim chamar a atenção dele. 

Imagino que a superexposição, como vem sendo praticada nos veículos da internet, alivia as tensões daqueles que se sentem frustrados, por não conseguir chamar atenção dos outros. Numa sociedade exibicionista como a nossa, as pessoas se ressentem de não estarem cumprindo o seu papel de anunciarem à malta "inchada de vaidade", que elas também existem. 

A atenção dos pares torna-se um alimento indispensável para sobrevivência na comunidade. O esgarçado tecido emocional, que encobre as pessoas no mundo moderno, não lhes deixa ver o ridículo, e o perigo, de saírem anunciando pelas redes sociais, cada passo, gesto e pensamento de suas vidas. 

Somente a mediocridade de uma existência sem emoções e sem sentido, pode explicar esse fenômeno moderno.  Somente a solidão espiritual de uma sombra, recorre a expedientes tão insignificantes para atingir qualquer rastro de luz.

Poesia


A propósito do dia da poesia, Teo Junior resolveu me provocar. Segundo ele Bandeira é superior a Cabral. Ele disse isso porque sabe que tenho muita afeição a poesia cabralina e ao estilo duro e seco que esse poeta empreende em seu versos. Somente Teo Junior é capaz de tentar provocar uma discussão baseado em fatos tão irrelevantes. A poesia, meu amigo, pra ser de verdade, ignora, qualquer gênero, escola, ou linha de pensamento. Ela é maior do que tudo isso. Agora eu me pergunto o que será mais fácil? O que será mais poético o amor, a dor de cotovelo ou uma pedra, uma faca ou bala. Quais dessas palavras estarão em melhores condições de narrar ao homem sentimentos e emoções? Todas. O poeta extrai das palavras sugestões. Agora, durante muito tempo, a única forma aceitável e usual de fazer poesia esteve relacionada a certo transbordamento de emoções, discursos confecionais e quejados.  Quando J.C. escolheu as pedras ele optou pelo caminho mais difícil. Ele inaugurou uma poesia que arrancava dos objetos inusuais e de forma incomum uma mensagem, que não se restringia aos estados espirituais e amorosos do eu lírico. Ele disse: “todas as palavras são poética”. O bom poeta será portanto, aquele que descondiciona as palavras de seu sentido dicionário, e sugerir  à elas sentidos até então jamais empregados. Esse é o verdadeiro ofício do poeta - resgatar as palavras do sentidos convencionais. João Cabral fundou, com isso, uma poesia que ainda não existia. Poucos podem dizer isso. Poucos poetas podem dizer serem criadores de alguma coisa. Quanto aos demais - leia-se ai os líricos - eles não tiveram coragem de encarar o trabalho de fazer poesia com objetos inusuais. Eles optaram pela tradição, pelo caminho já trilhado, pela picadas conhecidas e seguras. Talvez temessem contraria o público ou pior, desmentir aquilo que os legisladores recomentaram como socialmente aceito para aquilo que o homem médio se limita a ver. Ótimo. Nem todos são suficientemente arrojados. Isso não é um problema. O problema estar em querer tornar uma coisa superior a outra. João, sempre buscou o seu próprio caminho. Assim como muitos inovadores ele abriu a sua própria estrada. Nem todo mundo aceita as novas ideias. Haverá sempre aqueles, que preferem as zonas de conforto e, outros, que mesmo despedaçados pela injustiça, desconfiança e incompreensão, nunca desistirão de inovar. Creio que só avançamos na medida em investimos em novos caminhos - não estou dizendo que devemos ignorar os velhos- porém, não devemos viver a vida inteira sem desejar algo mais. Gosto da poesia de João Cabral porque pressinto nela um vigor que não encontro em outros poetas. A poesia cabralina me descortina novas possibilidades não só de compreensão do humano, mas também, e acima de tudo, mantém sempre viva a discussão dos limites da linguagem. Ele força a palavra a dizer sempre mais do que habitualmente estava acostumada a dizer, mantendo controle sobre o discurso.

Dalton Trevisan

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Você manda dizer que não tem decisão sobre o meu caso, quer dizer que está perdido, eu não quero saber, quero o dinheiro na minha mão seja como for, 19 anos que vivo nesta ilusão, cheia de esperança e no fim tudo perdido, por tua causa que nunca se interessou no meu caso, tem que dar conta do dinheiro, na minha mão eu quero os cem contos sem falta, esperava esse dinheiro para o fim de minha vida, minha velhice, ando muito doente, sem poder me tratar, você pensa que me deixa na miséria depois de tanta esperança, dando risada depois que desfrutou a minha beleza, não pense que fica assim, você é responsável pela minha perdição, há muito devia ter resolvido meu caso, você me abandonou e nunca ligou, só interessado em se aproveitar de mim, eu era donzela quando me desencaminhou, trate de dar um jeito no corpo, quero meus cem contos, esperando de braços abertos e depois de 20 anos não tenho mais direito, é isso que você pensa? eu quero o dinheiro da pensão, você me responda sem falta, senão vou aí na tua casa, envergonhando você na frente da tua família, nunca ligou para a minha pensão, se fosse para a cadela que já foi para os quintos você tinha se mexido, olhe que eu não estou brincando, eu só quero o que é meu, depois de 19 anos você não me larga na miséria, velha, doente, e fica se regalando, ganhando bem, e me deixa arruinada, quero o que prometeu a tua palavra de amante, meus cem contos, já não me incomodo com os juros, é favor responder esta cartinha, senão eu vou aí e será pior pra você, arranco os cem contos ou o teu coração com as unhas, sem mais aceite um beijo da sempre tua

Cidinha


Dalton Trevisan é um dos mais importantes escritores
do Brasil. Nasceu em 1925 em Curitiba.
Extraído do livro Mistérios de Curitiba.
(Edit. Record, 1996).

SHAKESPEARE VETADO

 
Paulo Autran interpretando "Rei Lear" (1996), obra agora "revista" e "adaptada" nos colégios americanos.
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Chega a notícia - desastrosa, a meu ver - que algumas escolas americanas querem substituir (isto é, censurar) certos trechos do magnífico legado de William Shakespeare, o mais admirado, estudado e enaltecido dramaturgo que já apareceu. Barbara Heliodora, crítica de teatro desde 1958 e atualmente no jornal O Globo dedicou toda sua vida para desbravar a gigantesca criação shakesperiana. Estudou-o mais do que qualquer outro intelectual no país. Fala dele com absoluta paixão e independência, pois sabe que Shakespeare é eterno. "O que não estiver na Bíblia está em Shakespeare", disse ela ao falecido dramaturgo Mauro Rasi.

Qualque espécie de censura soa como sendo uma maneira melindrosa e, pior, errática de impedir que determinadas verdades venham à baila, porque nem todas as verdades - como diz meu pai - podem ser ditas. Entretanto, a literatura é o campo (quiçá o único) que está numa posição privilegiada de se dizer tudo, sem meios-termos. A literatura tenta através do talento de certos homens e mulheres reprodizir, questionar, condenar os próprios indivíduos que pertencem a uma época e a uma sociedade. É como se o livro funcionasse como um "espelho público", onde nos enxergássemos continuamente, como dizia Molière.

Nada nos ensina mais do que os absurdos ocorridos nos períodos ditatoriais que tivemos, com mais violência o de 64, cuja canga fomos obrigados a suportar durante 21 anos. Jornalistas que de uma hora para a outra "suicidavam-se", teatros incendiados, atores boicotados na véspera dos espetáculos, sem aviso prévio da Censura Oficial, escritores presos e suas obras impedidas de circular (caso de Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca, de 1975 - tachado de "pornográfico"), para não falarmos da odiosa tortura.

A ditadura, pelo menos no Brasil, passou. A Censura (aparentemente) passou. Permaneceu a obra.

A Censura Oficial, ou seja ela qual for, quer-me parecer, ao vetar uma obra artística de chegar até o povo, julga estar "educando" este mesmo povo, coitado, tão fraco intelectualmente, tão inepto, que necessita de intérpretes que escolham por ele o que lhe é nocivo ou benéfico. Estranha, entretando, que em pleno ano de 2012 com a internet livre e os variados meios que oferecem sexo, violência a qualquer momento, que a sociedade americana - tão avançada e evoluída - tenha esse tipo de postura. É um retrocesso de quem acredita estar auxiliando uma sociedade, focalizada exatamente em sua raiz, ou seja, nos alunos, nos jovens estudantes, suprimindo-lhes obras essencialmente literárias, e o que é ainda pior: obras já consagradas, já canonizadas. Creio que num futuro próximo, esses adultos não gostarão de saber que um dia foram trapaceados pela educação que seus pais sustentaram, mediante pagamento de impostos.

Subliminarmente ou de maneira mais explícita, o sexo sempre esteve presente em tudo. Se se for suprimir uma obra porque ela focaliza o sexo, ou a violência, ou o crime, não fica um disco, um filme, um livro de pé. Num belo dia de 1958, após o espetáculo Os 7 Gatinhos, Nelson Rodrigues pediu a palavra e foi "explicar" sua peça à plateia (adulta) que a detestara e começara a gritar palavras de ordem. Precisava? Houve quem quisesse chamar a polícia. Será que esse público que pagou ingresso, não tinha condições - por si só - de refletir, de analisar as - vá lá - monstruosidades apresentadas? E a respeito da "intenção literária" do autor, será que alguém percebeu?

Mas do que a mera referência ao sexo, ou aos órgãos genitais, era extremamente fácil para a censura classificar uma obra de "pornográfica" e acabou-se. O que precisa ser efetivamente compreendido num texto é sua profundidade literária como um todo, e não atacá-lo por uma palavra, uma frase ou uma referência. É a primeria vez que ouço falar que Shakespeare é pornográfico e alguns termos de suas peças devam ser "alterado" por outras. Assustado, eu digo: NÃO.

A literatura tem poder de alterar diversos rumos num meio. Quando ousa falar a verdade, ela passam a representar um perigo para os "donos do poder" que se veem acossados, emparedados pela força da palavra. Shakespeare não fez nada além de focalizar o íntimo dos homens, como raciocinam os poderosos, os apaixonados, como os indivíduos engendram seus crimes etc. O grande poeta inglês mostrou que os seres humanos sentem inveja um dos outros, trapeceiam, dissimulam, traem etc. Considero uma heresia censurar obras de tão alto valor moral e ético.

Que os EUA são uma nação puritana, todo mundo sabe. Ela já vetou a estudo do evolucionismo num passado não tão remoto, pois ele entra em conflito involuntariamente contra o Criacionismo Bíblico. (Consta que Darwin era religioso). Agora, tenta alterar uma obra desta importância. Nos anos 90, talvez para dar um basta nessa hipocrisia toda, uma mulher já calejada pela vida, escreveu uma peça que - coitados dos americanos - se tornou o maior êxito daquela década e excursionou o mundo. A palavrinha que os americanos odeiam ler de cara já aparecia no título da peça, e Eve Ensler teve o despudor de narrar tim tim por tim tim as funções do órgão genital feminino, repito: nos seus mínimos detalhes, mediante entrevistas com diversas mulheres. O título de sua obra-prima: Os Monólogos da Vagina. Deve ser o livro que encabeça o índex americano nesses últimos anos.


TEO JÚNIOR

Improbabilidade poética - a poesia deixa de pertencer ao poeta quando ganha as páginas dos livros


A literatura promove encontros estranhos. Um deles ocorreu entre Chico Buarque e João Cabral de Melo Neto. Chico Buarque de Holanda é o maior compositor lírico desse país. E justamente ele, que sempre carregou a sua poesia de um transbordamento de emoções e sentimentos, foi se juntou ao maior poeta anti-lírico do país para criar uma parceria improvável. Em 1965 Chico, então com pouco mais de vinte anos, foi convidado pelo diretor do TUCA, Roberto Freire, para musicar o poema que a companhia estava adaptando para o teatro. Daí nasceu o musical MORTE E VIDA SEVERINA. Um dos raros poemas de João Cabral que suporta música. Cabral, como todos sabem, era um poeta avesso a musicalidade, e se esforçou a vida inteira, para impedir que sua poesia expressasse alguma melodia involuntária. Ele acreditava que a musicalidade e o ritmo melódico de um poema, dispersava a atenção do leitor e o distanciava dos conteúdos poéticos necessários para compreensão da narrativa. Através da rima toante, frequentemente empregado pelo poeta em sua poesia para suprimir a música, a sua linguagem tornou-se uma marca de expressão individual que o distinguia de todos os poetas nacionais. Todos que ouvem um poema cabralino identificam de pronto a sua dicção. Ela é áspera, árida e seca, como as paisagens descritas em seus poemas. Em seu mundo particular, quase não se ouve nada, mas se ver muito. João Cabral optou pelo visual ao excluir os sons de seus poemas. A façanha dessa poesia foi a de se afastar daquilo que os legisladores literários sempre recomendaram: uma poesia direcionada aos sentimentos. Mas a poesia de João Cabral tomou o seu próprio rumo. Rebelou-se contra o poeta e revelou a sua face musical graças a genialidade de Chico Buarque que desentranhou das pedras cabralina, sons e emoções que o poeta jamais imaginou que elas contivessem.  

De repente Romeu ficou assexuado como os anjinhos das catedrais


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Como forma de ajustar os passos da sociedade ao ritmo do sistema, todos os regimes de exceção, indistintamente, praticaram a censura contra a literatura, o teatro, o cinema e outras expressões. Ditadores, reis, e governantes autoritários, desconfiaram sempre das histórias narradas pelos artistas. Elas poderiam como fez Shakespeare em Hamlet, desmascarar as tiranias dos lideres e constranger os governantes perante os súditos. 

A livre expressão do pensamento, desde sempre, constituiu assim, a esses regimes, uma ameaça devastadora, que devia ser combatido a qualquer custo. Não à toa, todos eles mantiveram formas de interdição, que, se não extinguiram de todo a livre circulação das ideias - como bem pretendiam os déspotas - serviu para mantê-las nos guetos, bem longe do grande público.  

Não faltam exemplos na história de perseguições, ameaças, torturas e degredo àqueles que ousaram desrespeitar as convenções. Em 1938 o poeta russo Óssip Mandelstam foi enviado a um Gulag e lá morreu por ter afrontado o ditador soviético Stalin, com um poema satírico. Stalin, alias, mantinha uma extensa rede de espionagem para assegurar o silêncio dos artistas e esconder assim, as atrocidades promovidas por ele nos campos de concentração. 

Investir contra a literatura não é mais um ato do passado. Nem são mais privilégios de ditadores. A cada dia uma nova e assustadora notícia de interdição assalta a crença de que já evoluímos o bastante para não atacar as artes. Primeiro foi a censura do CNE conta os livros de Monteiro Lobato, supostamente acusado de racismo. Depois veio a notícia de que o mesmo já havia ocorrido nos EUA quando escolas recusaramas obras de Mark Twain pelo mesmo motivo. Na França Hergé, autor de Tintim também não escapou a sanha moralizante, que prefere destituir a liberdade de expressão e artística, a discutir com seriedade as contribuições desses mestres para formação de gerações e mais gerações de leitores. 

Agora chega a notícia de que nos EUA - mais uma vez - algumas escolas estão fazendo ediçõesespeciais de Shakespeare com o intuito de eliminar, qualquer menção em suas obras, a atos libidinosos. Assim, palavras como pênis, vagina e suas congêneres, simplesmente sumiram. 

Ora como isso pode ser tolerado? Em que mundo de merda nós estamos? Excluir essas palavras do texto literário não assegura ao adolescente que ele não será promiscuo, tarado ou coisa pior - presumindo que esse seja o objetivo da censura. O psicanalista infantil Bruno Bettelheim em seu livro       A PSICANÁLISE DOS CONTOS DE FADAS, escreveu que “a cultura dominante deseja fingir, particularmente no que se refere às crianças, que o lado obscuro do homem não existe, e professa a crença num aprimoramento otimista”. 

Muito embora todas as pessoas nasçam através do ato sexual e isso seja muito natural para boa parte da população, alguns, ilustres guardiões da decência preferem fingir que o mundo é outro. Muitos pais, afirma BETTELHEIM, acreditam que só suprimindo realidades desagradáveis e reforçando os aspectos positivos da vida, assegurarão uma vida sem angustias aos filhos. Uma “dieta unilateral nutre apenas unilateralmente o espírito, e a vida real não é só sorriso”, conclui o psicanalista. 

Sobre qualquer pretexto a censura é um ato de violência que não pode ser tolerado pela sociedade. Ela se constitui numa afronta à liberdade e ameaça a pluralidade de ideias que são as bases de sustentação da sociedade moderna. Essas ações são reveladoras. Elas ilustram que não apenas os regimes autoritários, mas também, e infelizmente, a sociedade livre não tem a menor ideia do que seja arte e suas funções. 

A arte, quando recria o mundo em suas narrativas, não faz nada mais do que reproduzir de forma fictícia o que é produzido pelo homem. E o que é produzido pelo homem tem lá o seu quinhão de beleza, mas abunda também, uma asquerosa face que duela com os encantos. Não serão as ações dos censores, que evitarão qualquer desvio moral e restaurarão uma pretensa natureza bondosa do homem. Esqueçam. Então, não dever ser ela (a arte), que revela ao homem a si mesmo e ao mundo, que deva ser censurada. Antes, cabe ao homem, segundo seu arbítrio e individualidade, repudiar qualquer ação nociva e que exponha a sociedade ao perigo.