CITAÇÃO 8


"De fato, na história da humanidade aconteceu um fenômeno importante, capital, que é o nascimento do pensamento científico e seu desenvolvimento. Esse fato é um valor intrínseco, em si mesmo, que eu realmente coloco fora do relativismo cultural. Agora, se você olha as coisas um pouco mais do alto, dirá que esse pensamento científico que respeitamos e que nos apaixona em seus progressos passo a passo, que se efetua no decorrer dos séculos, anos ou dias, é na realidade profundamente vão. Já que o que nos ensina é, ao mesmo tempo, a melhor compreender as coisas em seus detalhes e que não podemos jamais compreender na totalidade, no conjunto. 

O pensamento científico, ao mesmo tempo que alimenta nossa reflexão e aumenta nossos conhecimentos, mostra a insignificância última desse conhecimento. Depende do seu ponto de vista e do nível, que é o nosso, o do homem do século XX, do mundo ocidental, o pensamento científico é algo essencial, fundamental, e devemos utilizá–lo. Porém, se nos tornamos metafísicos, diremos que de fato ele é essencial, mas ao mesmo tempo é preciso saber que não serve para nada”.

(LÉVI–STRAUSS, C. Entrevista à Bernardo Carvalho, in FOLHA DE S. PAULO, 22 de outubro de 1989).

Uma “Antígona” de tirar o fôlego na Rua da Cultura


A bonita leitura da Stultífera Navis para o clássico sofocleano



Téo Júnior *

“Antígona”, magnífica obra legada pela Grécia Antiga – e que dera o merecido prestígio ao seu autor, Sófocles (496 – 406 a.C), conquistando o 1º. Lugar no concurso trágico de 442 a.C, conta a história da famosa donzela que, ao purificar o cadáver do irmão, assinaria sua sentença de morte. 

Os conflitos e as reviravoltas que o texto vai, aos poucos, apresentando, reclamam uma atenção e cuidado muito especiais de nossa parte, pois todo ele é permeado de emoções viscerais e intensas, já que os personagens agem guiados por convicções das quais não estão dispostos a retroceder tão facilmente. 

Creonte, uma vez estabelecido no trono de Tebas, parte do princípio de que deve ser obedecido – e não questionado, sejam quais forem suas resoluções. Antígona, por seu turno, considera-se no direito de transgredi-las, sim, quando estas não estiverem chanceladas pelos deuses, a quem venera. Não se pode compreender o teatro sofocleano sem se recordar de que os gregos eram profundamente religiosos e, portanto, tementes à vingança implacável do Olimpo. Observando-se por este ponto, notamos sem dificuldade, que são os poderosos – e não os meros mortais – quem experimentam a audácia de burlar as leis divinas, desafiando não raro a sabedoria dos oráculos etc., incorrendo-se desta forma em blasfêmia. 

Mas, como nada em teatro é tão simples quanto parece e antes que apontemos culpados e inocentes, há um fator em “Antígona” ainda mais perturbador: a única criatura que desacatou o decreto fixado pelo rei foi, ironicamente, sua própria sobrinha – e que será dentro em breve, sua nora. 

Até que ponto o Estado pode interferir naquilo que o cidadão julga necessário realizar? Eis a grande questão da peça, escrita há vinte e seis séculos. 

Uma leitura atenta de certos teóricos contemporâneos como Leyla Perrone (“Vira e Mexe, Nacionalismo”; Cia. das Letras) e Umberto Eco (“Interpretação e Superinterpretação”; Martins Fontes), desperta a atenção para com um fenômeno observado entre os grandes textos literários: a profusão das analogias, de semelhanças que há entre eles, cuja mensagem é a de que uma obra sempre está dialogando com a outra, e sem que nenhuma delas perca sua originalidade. Não resisto à tentação de estabelecer a maneira como Sófocles radiografou os poderosos: Creonte e Édipo (seu antecessor) têm em comum a irritabilidade, a pressa em julgar quem lhes rodeia, o (aparente) paternalismo pronto para converter-se em arrogância, e a fúria indisfarçável que há em suas palavras quando seus desejos não são prontamente atendidos. 

“Antígona”, antes de ser uma tragédia onde três indivíduos morrem devido à resolução de um tirano é, antes de tudo, uma parábola que sublinha aquele sentimento tão escasso hoje em dia: o amor legítimo. Amor por parte da protagonista, ao não permitir que o corpo de Polinices fosse profanado, servido de alimento para aves e cães – e, ato contínuo, amor para com seus progenitores, que certamente endossariam a empreitada. Amor de Hémon, destinado àquela que seria sua esposa, ao rechaçar com veemência a decisão precipitada do pai. Amor de Tirésias, não apenas para com a grandeza do gesto desta menina, mas principalmente respeito para com as divindades – que brota, espontaneamente, de suas iluminadas palavras. 

Ao acompanharmos “Antígona”, detendo-nos em cada detalhe, quer nas ponderações de Ismênia, quer nos argumentos ambíguos do Coro e também no embate entre a protagonista e o soberano (duas personalidades descomunais) temos a impressão de estarmos ouvindo uma sinfonia, e não lendo uma obra teatral. Ao representar “Antígona”, o mais destacado dramaturgo grego de todos os tempos – que deixou para a humanidade peças do calibre de “Édipo-Rei” e “Electra” compôs uma linda e admirável poesia. 

“Antígona”, por acaso, encerrou o bonito projeto do Sesc/Artes Cênicas. Como não há a menor possibilidade de se analisar todas as peças do programa, optou-se em apreciar a obra de Sófocles, dada sua imortalidade. Isso, é claro, sem qualquer intenção de desmerecer nenhuma das demais. Estão de parabéns os organizadores e elencos. 

Agora, vamos a nós: o Coro, em seu todo, foi uma surpresa. Composto por vinte pessoas – moças e rapazes em trajes quase que sumários – e que amiúde movimentavam-se como verdadeiros malabaristas, se contorcendo em vigas de ferro, lembraram-nos um picadeiro. Alguns atores, inclusive, apareceram nus, remetendo-nos (é inevitável) às carnavalescas montagens de Zé Celso Martinez. Existe uma cena no espetáculo que, a meu ver, fora extremamente inútil: quando todos eles se abraçam, esfregando-se uns nos outros, numa estranha dança carregada de lascívia. Sem dúvida, o diretor quis passar a ideia da unidade da opinião pública defendendo a postura da protagonista. Porém, essa imagem, sensualizada ao extremo, não me pareceu a mais adequada, posto que não acrescenta nada ao enredo. Bastava o momento (feliz) em que o coro sorri, à revelia do rei, deixando transparecer sua censura quanto ao edito, sem a necessidade de sexualizar a cena.



IRREVERÊNCIA


Kassem, caracterizado como um palhaço no papel do Emissário foi um equívoco: seu modo excessivamente irreverente ao narrar ao rei a descoberta dos cuidados ao cadáver interditado, mais lembraram o bobo da corte do que um infeliz servidor que teve o azar de ser o portador da mesma. Sua maneira infantilizada de se expressar é inaceitável sob qualquer aspecto, na medida em que ele está diante de uma autoridade – a quem se deve temer – e não parlamentando com um amigo ou um colega. Se o personagem nos diz claramente: “Eis-me aqui, contra a minha vontade e contra a vossa, porque ninguém se alegra em ser o portador de más notícias”, como explicar que ele fosse tão satisfeito e descontraído ao anunciá-las? 

Edênia Góis (Eurídice), Marcelo Paz (Hémon; papel que nada tem de fácil), Régi Gondim (Corifeu) e Sandra Azevedo (Ismênia) embora aparecendo menos, desempenharam seus papéis com bastante competência. 

A interpretação de Jane Carvalho (Tirésias) fora louvável. Ela entrou, deixou seu recado e retirou-se – mas eu gostaria de fazer uma ressalva: na medida em que vai falando, o personagem começa a rolar no chão, convulsivamente, desenhando-se a nossos olhos um quadro grotesco. É algo que não deixa de surpreender, porque esse arrebatamento, cujo espírito revela-se demasiado agitado e ressentido, não caracterizam o adivinho com exatidão. Como o homem que “traz consigo a força da verdade”, Tirésias representa antes de tudo a mansidão e a tolerância, sempre aliadas àqueles que são os intérpretes dos deuses. No caso, não se trata nem de um erro – e sim de um evidente exagero.  

O Creonte de Lindemberg Monteiro era exatamente o que se esperava. Categórico e resoluto em suas decisões, sua voz fez-se ouvir e respeitar. A atuação dele possui a energia e o vigor inerentes ao grande personagem que interpreta.  

Por fim, a protagonista. Meu Deus, o que foi aquilo que vimos na Casa da Rua da Cultura no último domingo? O desempenho de Aimée Resende foi tão sincero e corajoso, que somente uma atriz profundamente passional seria capaz de realizar. Há na atuação de Aimée a determinação latente que as heroínas obstinadas exigem. O momento em que ela balança-se freneticamente, apoiada sob um cabo de aço, despedindo-se dos cidadãos, fora simplesmente magistral e carregado de beleza. Comovente e inesquecível. 

No cômputo geral, parece que com “Antígona”, a parada da Cia. Stultífera Navis está ganha. A direção de Lindemberg Monteiro justificou-se na medida de se adaptar aos nossos dias um clássico com ideias bastante sugestivas. O espetáculo fora apresentado gratuitamente. A ovação que se seguiu ao seu término atestou que se trata, efetivamente, de um grande trabalho. 

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* É professor e pesquisador de teatro.

Contato: @junior_teo 

As humanidades não Humanizam


As humanidades, escreveu o crítico George Stein, não humanizam. Estou cada vez mais convencido disso. Até hoje, não consta que uma obra literária tenha salvado uma única criança da fome, impedido uma guerra ou estancado o sangue que os homens insistem em derramar uns dos outros. Porém, se as artes não salva, nem conforma totalmente o homem, tão pouco sem ela, essas coisas deixariam de existir.



Escrevo isso a propósito do que li aqui.

O livro não existe


“A partir do momento em que você entrega um livro - essa é a principal angustia de um escritor - ele deixa ser seu. O livro só existe quando cada leitor senta pra ler. Na verdade o livro não existe dentro do livro. O livro existe na cabeça de cada um. Se cada um aqui pegar o meu livro pra ler, cada um vai ler um livro diferente. Esse livro só vai existir para ele”.


José Castello aqui

O profissional da memória - Poema de João Cabral


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O PROFISSIONAL DA MEMÓRIA

Passeando presente dela
pelas ruas de Sevilha,
imaginou injetar-se
lembranças, como vacina,

para quando fosse dali
poder voltar a habitá-las,
uma e outras, e duplamente,
a mulher, ruas e praças.

Assim, foi entretecendo
entre ela, e Sevilha fios
de memória, para tê-las
num só e ambíguo tecido;

foi-se injetando a presença
a seu lado numa casa,
seu íntimo numa viela,
sua face numa fachada .

Mas desconvivendo delas,
longe da vida e do corpo,
viu que a tela da lembrança
se foi puindo pouco a pouco;

já não lembrava do que
se injetou em tal esquina,
que fonte o lembrava dela,
que gesto dela, qual rima.

A lembrança foi perdendo
a trama exata tecida
até um sépia diluído
de fotografia antiga.

Mas o que perdeu de exato
de outra forma recupera:
que hoje qualquer coisa de um
traz da outra sua atmosfera.


João Cabral de Melo Neto. Museu de Tudo, p.401-402.

Lições pelo caminho

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A docência é uma profissão de surpresas, encantos e muitas, muitas descobertas. Como ocorre em qualquer ofício, traz consigo também, volta e meia, um bocado de frustrações. Mas essas são rapidamente superadas quando, o que assistimos em sala de aula, contradiz o convencionalismo no qual se tornou o ensino atualmente e restaura a nossa confiança de que ainda há alternativa. Outro dia estava em sala e durante uma discussão surgiu uma palavra, que para maioria dos meus alunos era desconhecida. A palavra era INANIÇÃO. Alguém perguntou o sentido da palavra, quando do fundo da sala, antes mesmo que eu pudesse abrir a boca, emergiu uma resposta incomum e ao mesmo tempo brilhante, que quase me arrancou o fôlego e sufocou qualquer outra resposta que eu pudesse oferecer. “INANIÇÃO”, disse apressada a minha aluna, “É UM TIPO DE MORTE QUE SOMENTE O POBRE SABE COMO É”. Assaltado pela surpresa eu balbuciei alguma coisa que concordava com a descrição que acabava de ouvir. Nesse dia voltei para casa revigorado.  

Insolvência

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O intelectual de esquerda, David Harvey autor do livro a Condição Pós-Moderna afirma em seu mais recente trabalho que uma alternativa viável à crise financeira que assola os países europeus é, dar o calote nos bancos que arruinaram as finanças dos estados e ameaça agora a sobrevivência de milhares de trabalhadores na Espanha, Portugal, Itália e principalmente na Grécia. No seu livro O ENIGMA DO CAPITAL, que sai no Brasil pela Boitempo ele diz que não é justo que o trabalhador arque com todos os ônus de uma política financeira desastrosa e desumana. Caberia, segundo o geógrafo, ao capital especulativo e aos bancos, que geraram todo esse imbróglio, assumir o rombo. O que tem haver o trabalhador com esse problema? Por que os governos europeus insistem em congelar os salários, aumentar os impostos, demitir servidores, aumentar o período de contribuição para previdência entre outras medidas para salvar o capital financeiro? Essas e outras questões são discutidas nesse trabalho.

Para não esquecer


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Alguém aí ainda é capaz de julgar, que não vai nada de errado no mundo?

O agravamento da crise europeia

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De repente, o mundo parece ter saído dos eixos, ou será que agora ele estar se ajustando? Por muitos anos os países europeus gozaram de uma estabilidade econômica e social que os puseram à frente das conquistas tecnológicas, políticas e militares. À segurança desse dias, contrastam agora com a instabilidade e as incertezas que levam multidões às ruas, por toda europa, expressarem o seu descontentamento. 

As respostas políticas adotadas, com vistas a contornarem a situação, lembram mais os bárbaros procedimentos médicos que tratavam o paciente anêmico infundindo sanguessugas, do que com as intervenções cirúrgicas, que fizeram a fama da Europa um continente civilizado. 

A julgar pelos relatos que lemos nos jornais e blogs, assistimos o desmoronamento moral, político e social de um continente que, por séculos, ditou, a ferro e fogo, os rumos do mundo. O risco agora é de que essa erosão econômica descambe para a desagregação social, com consequências ainda piores para o continente. Sem emprego, previdência social, crédito e perspectiva de alteração da economia,  veremos o quão civilizados os europeus podem ser.

UMA FORÇA DA NATUREZA - TENNESSEE WILLIAMS

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Téo Júnior*


Classificado pela crítica mais honesta como sendo o melhor teatrólogo norte-americano do século XX depois de O’Neill, o dramaturgo Tennessee Williams teria feito cem anos no ano passado se não tivesse morrido em 1983.  

Williams extraiu de sua vida atribulada e infeliz a matéria-prima que ganhou corpo nos palcos e o projetou para o estrelato. Se no teatro brasileiro Dias Gomes evidenciou a religião mesclada às nuances políticas (“O Berço do Herói” e “O Bem Amado” são exemplos) ou Guarnieri, que assinalou o cotidiano da classe operária, alguns temas eram especialmente caros a Williams, todos eles podendo se resumir na obsessão de se estabelecer o império familiar, contudo prestes a desmoronar.

Tennessee escreveu muitas obras geniais, claro, dentre as quais: a maravilhosa “Bonde Chamado Desejo” (1947), “Anjo de Pedra” (1954), “Gata em Teto de Zinco Quente” (1955) e “A Noite do Iguana” (1961). Há alguns anos, Décio contou que o espetáculo que mais lhe marcara fora justamente o “Bonde”, que ele assistiu em Nova York. Em cena, um ator bonito e muito jovem: Marlon Brando. 

As personagens femininas de Williams, porém, destacavam-se dos homens com quem contracenavam porque elas eram passionais, fortes, exageradas, dominadoras. Suas peças ganharam ressonância no cinema, seus enredos foram vistos em quase todos os idiomas e sacudiram as grandes audiências. Elizabeth Taylor, morta em março, simbolizou, sem dúvida, a maior expressão do que uma mulher saída da pena de Tennessee seria capaz.

 FORÇA DA NATUREZA


Yan Michalski, outro gigante da crítica, apreciando a atmosfera de Williams, apontou uma “sociedade condenada” e “sensibilidades adormecidas”. Elia Kazan, primeiro diretor do “Bonde” falou em “civilização que agoniza”. Em síntese, floresce nesta dramaturgia a convivência atribulada entre os indivíduos, gerando (como era de se esperar) atritos descomunais, onde parece não haver nenhuma espécie de escapatória para eles. Todavia, nota-se o desejo instintivo de não permanecerem paralisados ante seus flagelos. Há, nas histórias de Williams, aquele começar e recomeçar tal qual o bordado de Penélope. 

É a capacidade de enxergar a intimidade humana sem lentes embelezadoras, atrelada a um privilégio de constatar que a prática é muito mais triste e distinta do que supõe a vã filosofia teórica, que faz de certos homens grandes escritores. Tennessee fora um deles. 

A função do escritor, por mais que arranhe determinadas sensibilidades é – parafraseando Todorov – documentar a verdade. 

Ao que nos consta, a data passara despercebida por nossos elencos. E é lamentável que nenhum encenador tenha manifestado o interesse de dirigir qualquer texto desta força da natureza que foi Williams. Teatro, senhores diretores, é prestação de serviço. Não se esqueçam jamais disso, como nós não nos esquecemos. 

* É crítico de teatro e colaborador do blog NAVEGANTES.... Contato: junior_teo

O poeta e a sociedade

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O poema abaixo foi escrito na década de 80 pelo escritor Affonso Romano de Sant´anna, mas é de uma atualidade inegável. Lendo-o posso confiar nas palavras de Mario Vargas Llosa que disse ser a poesia o espaço da restauração e preservação dos sentidos nobres das palavras. Os muitos usos que fazemos diariamente delas, associado a algumas circunstâncias e licenças imorais que frequentemente ocorrem na política, na economia e em outros setores da sociedade, desgastam os sentidos originários e induzem as palavras um sentido enviesado, que tem como funções, desmerecer, desacreditar e lançá-las no desuso, principalmente aquelas que mais importam para construção de uma sociedade igualitária e justa. 

Uma vez que não existe mais a palavra some com ela o objeto ou a ação que lhe dava vida. Isso está ocorrendo nesse instante e em toda parte. Essa não é uma ação impensada, como muitos poderiam imaginar. Ao desarmar uma palavra os políticos e os malfeitores asseguram, silenciosamente, uma visão de mundo em que todos os inconvenientes -ao menos aqueles que lhes doem o calo - deixam de existir. Um mundo sem “ordem” ou organizado segundo as vontades de um grupo cria uma nova língua e com ela os valores que orientarão todas as ações. Foi assim que o Nazismo e as ditaduras privaram as palavras Democracia e Liberdade de circulação e instalaram um regime de terror sem precedentes na história. 

Triste mundo em que a “paz”,o “amor”, a “esperança”, a “decência”, a “justiça” e a “honestidade”, já não são mais tão importantes ou significam o que um dia todos nós esperávamos. Pairam sobre elas certa desconfiança que vão pouco a pouco mudando o seu sentido para outra esfera, menos representativa e mais envelhecida pelo cansaço provocado pela contradição dos discursos. Contra esse ataque às palavras, contra o seu envelhecimento, contra o descrédito é que insurgir-se o poeta. A ele cabe restituir, contra toda prova, os sentidos primários que o sistema insiste em desprestigiar. O poema de Affonso Romano de Sant´anna exemplifica essa prática do poeta. Ele lança luz sobre as contradições da sociedade brasileira e questiona os valores sobre a qual ela insiste em se assentar, ao tempo em que, revela como o discurso, baseado na divergência das ações, torna todas as palavras pronunciadas pelo brasileiro um faz de conta.


SOBRE A ATUAL VERGONHA DE SER BRASILEIRO

" Este é o país do diz e do desdiz
onde o dito é desmentido
no mesmo instante em que é dito.
Não há linguista e erudito
que apure o sentido inscrito
nesse discurso invertido.

Aqui
      o dito é o não-dito
      e  já ninguém pergunta
      se será  Benedito.

Aqui
      o discurso se trunca:
      o sim é não
      o não, talvez,

   o talvez

                -nunca".