Enredo rodriguiano: o espetáculo impecável de Bruno

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O texto a seguir saiu hoje no Cinform de Aracajú, foi escrito por Téo Júnior* e reproduzido aqui com a devida vênia. Desde já eu agradeço ao Téo pela colaboração.


É de amargar a boca os meandros da tragédia protagonizada por Bruno Fernandes – na realidade um animal da pior espécie – que atuava no Flamengo (acaba de ser demitido), era influente, rico e possuía, até o mês passado, expectativas de jogar na Europa, de quintuplicar seu salário e de atuar na próxima Copa. Impressiona-nos que o mundo deste rapaz tenha caído quando ele conta 25 anos apenas, sem que houvesse tempo hábil para sua carreira deslanchar. Foi como um grande castelo de cartas, que ao menor sopro vem abaixo, em fração de segundo. No presente momento, Bruno – coitado! – desempregado, preso e repudiado pelo país, conhece a antessala do inferno.

É aquele velho clichê do pobrezinho favelado que fica rico de uma hora para outra. Esses indivíduos, uma vez reconhecidos e admirados, não raro revelam-se portar um desequilíbrio emocional bastante elevado, procurando compensar – ainda que inconscientemente – antigas frustrações e privações, comportando-se de modo infantil e disparatado. Adquirem amiúde uma personalidade narcísica e agem sem pesar causas e consequências, julgando-se invencíveis. Às vezes, o desfecho é fatal.


LISTAGEM DE HORRORES


Tudo bem que Eliza Samúdio não fosse nenhuma flor que se cheirasse, tendo inclusive participado de filmes do mais baixo nível – mas a maneira com que foi assassinada não tem paralelo com nenhuma outra que eu conheça. Fora asfixiada por braços fortes, sem capacidade para defender-se; subjugada por mais de um homem, justamente para não haver chance de sobrevivência. Se não bastasse, seu cadáver fora devorado por cães já treinados para fazer misérias. Como salientou o velho Tirésias em “Antígona”, “não há vantagem alguma em alguém morrer duas vezes”. Nesse desdobro, vem à luz o abandono de Elisa, na infância, pela mãe; a reputação do pai (acusado de pedofilia); a do irmão de Bruno (estuprador, preso); a esposa do jogador (a oficial) também está vendo o sol nascer quadrado há um tempinho. Consta que o pai de Bruno, já falecido, era ladrão. A listagem de horrores dessas duas famílias parece não acabar nunca. E isso tudo nos remete a um grande palco, onde assistimos às piores catástrofes, alimentando em nossa alma a ideia vã de que essas monstruosidades habitam apenas o mundo fictício dos grandes autores, e não a vida real.

Quando Nelson Rodrigues montava suas peças, diziam-se horrores a seu respeito: ele era o “tarado”, o “imoral”, o “pornográfico”. Onde alguns poucos enxergavam nele o gênio inconformado com a condição humana, outros viam o “maluco” que precisava ser ignorado a todo custo, porque ele escrevia sobre pessoas “doentes”, “contaminando”, destarte, as sagradas famílias brasileiras.


ENREDO MACABRO


Pois com todo o talento dramático que possuía, cuja força motriz era sempre a violência, o sexo desenfreado e as paixões avassaladoras, Nelson em quarenta anos de profissão não fora capaz de criar uma história tão fétida como a que estamos assistindo, porque ele devia crer que, por pior que fosse, o homem não chegaria a tais extremos. Ao publicar “Álbum de Família”, em 1945, recebera um tratamento tão agressivo e tão vil como se ele fosse não apenas o doido alegre da casa – mas a própria encarnação do demônio. O texto ficou 22 anos sob censura, devido ao seu conteúdo – sua fama de “anormal” começou ali. Esta peça aborda uma família como qualquer outra – vista a olho nu, todavia se observada com uma lupa, podemos acompanhar sua degradação moral ocorrendo paulatinamente, como se nós, leitores ou expectadores, fôssemos uma criança hipnotizada visualizando um enredo macabro pelo buraco da fechadura: irmãos se amando em desespero, uma mãe enamorada de seu filho, um pai que deseja em segredo a filha etc. Nelson pôs o dedo no delicado tabu do incesto sem se esquecer da selvageria gratuita praticada pelas bestas-feras. Esse material aparentemente tão nocivo à comunidade, que teve a audácia de exibir indivíduos cujos impulsos num primeiro instante permanecem recalcados, para depois se aflorarem de maneira abrupta, é um conto de fadas perto do escândalo que envolve o goleiro Bruno.

A sociedade, sempre se esforçando ao máximo para parecer digna e sadia, não suportou outrora a relevância de uma obra de arte, preferindo fechar os olhos. Hoje, os srs. Bruno Fernandes e “Macarrão”, o coadjuvante, empurram nessa mesma sociedade goela abaixo as entranhas de suas ações inomináveis, e ela é obrigada a enxergá-las, a toda hora – queira ou não queira. Bem feito!

Temos aí um caso impressionante da vida real deixando a ficção comendo poeira. Se fossem atores, e se seus desempenhos fossem projetados no cinema – não duvidem – ambos estariam no mínimo cotados ao Oscar, e fariam a fama e a riqueza de qualquer autor ou diretor que trabalhasse com eles.

Quando eu era criança, ouvia falar que o que distingue o gênio do medíocre é que o gênio está sempre à frente de seu tempo. Trinta anos depois de sua morte, o maldito teatrólogo vinga-se agora. Estejamos certos de que os sábios são realmente eternos. Os personagens Eliza Samúdio, Luiz Samúdio, Bruno Fernandes, Rodrigo Fernandes, “Macarrão”, Marcos “Bola” e Dayanne Souza eram “normais” até outro dia, até que a cortina que lhes protegia se abriu ao grande público e suas máscaras caíram totalmente. Aplausos para Nelson!



[*] Professor do Dep. de Letras da Universidade Federal de Sergipe.
Contato: teocte@hotmail.com



SUGESTÃO DE LEITURA:

Álbum de Família”, tragédia em 3 atos

Autor: Nelson Rodrigues. 107 pgs.

Edit. Nova Fronteira

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